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Uma História de Família

A Expectativa e o Espectro

Por Jorge Cruz

Durante o Festival do Rio 2019

Uma História de Família

Até o momento a sessão mais cheia testemunhada no Festival do Rio 2019 foi a de “Uma História de Família”, que faz parte da Mostra Panorama. Werner Herzog atraiu bastante gente entre os chamados “espectadores comuns”, além da óbvia curiosidade dos críticos. Muitos talvez tenham conhecido seu cinema a partir de obras como “Aguirre, a Cólera dos Deuses” (1972) e “Fitzcarraldo” (1982), que o trouxe ao Brasil com sua mania de grandeza bagagem. Lembro do estranhamento quando adolescente ao ver José Lewgoy, sempre presente nas telenovelas, falando em outro idioma, bem como a estética característica dessas obras.

O cineasta sempre usou a territorialidade como linha de abordagem de alguma maneira. Na sua nova obra ele não apenas demarca um arborizado parque japonês com as tradicionais cerejas em flor como as usa como personagens. Se não há uma preocupação de enquadramento que apresente o personagem da forma como precisamos para entender indubitavelmente seus anseios, Herzog lança um pragmatismo na inserção dos créditos iniciais pensadamente encaixados. Quando transita pela cidade, ele traz um pouco da união de arquiteturas bem característica dos grandes centros urbanos asiáticos, mas essa junção entre antiguidade e ultra modernidade é mais percebida na interação entre personagens.

Quando a narrativa semi-futurista, no estilo de alguns episódios de “Black Mirror” se impõe, o estranhamento das reações de Mahiro (Mahiro Tanimoto), adolescente de doze anos que nunca teve contato com o pai, é genuíno. O diretor conduz sua câmera emulando um documentário de maneira que outro estranhamento, o da ocupação do parque, também seja sentido por ela, que pode ser definida como representante de uma geração pouco afeita a atividades externas.

Os primeiros minutos de “Uma História de Família”, por mai curioso que isso possa parecer, dialogam muito com “Family.Work.Shop.“, produção selecionada para o Festival Ecrã 2019. Se lá os espectadores sentiam certa angústia por apenas assistires a horas de corredores de shoppings, algo que boa parte faz todos os finais de semana, aqui o cansaço mental se dá de forma diferente. A partir de uma relação construída e conduzida entre pai e filha Herzog propõe um debate sobre a possível substituição da matéria para a manutenção de um vínculo sentimental.

Usar uma representante de uma geração ainda em desenvolvimento, porém aparentemente convicta de suas intenções, o longa-metragem comprova que no mundo globalizante nós criamos nossas próprias conexões. Em uma sessão na zona sul carioca, área de alto poder aquisitivo, com público majoritariamente da terceira idade, “Uma História de Família” foi encarado como uma deliciosa comédia. Imagino que “O Lagosta” (2015), de Yorgos Lanthimos , tenha passado pelo mesmo processo. Só que Herzog aqui atua como um mestre ancião perto do maneirismo estético esfirulante de Yorgos. Há muito mais em sua obra, mesmo que soe como humor de absurdos para alguns de igual maneira. Ao contrário da introspecção do protagonista vivido por Colin Farrell, há certo deboche na maneira como o texto é colocado nesse longa-metragem.

Em uma camada mais acinzentada é interessante notar como as substituições de parentes e amigos da empresa que dá nome ao filme geralmente se vinculam às figuras masculinas. A ausência desse referencial torna de certa maneira indiferente a pessoalidade. Em um mundo onde se questiona muito nossa capacidade de total controle de nossas vidas, a proposta do serviço de aluguel de humanos é perfeitamente crível.

“Uma História de Família” só não nos encanta mais porque não escolhe uma linha de abordagem. Pincela várias frentes, como questão de gênero, relacionamento abusivo (na velhice), uberização das atividades até chegar na famigerada substituição do humano pela máquina. Se presta mais como um registro de seu tempo, o que dará força à obra de maneira crescente com o passar do tempo, do que fincar pé sobre determinado ponto.

Mahiro como personagem é bem mais instigante do que Ishii (Ishii Yuichi). A partir do momento em que ela se vê construindo um pai para si, ela se permite conduzir suas memórias da maneira como quiser. Essa possibilidade de nos moldarmos como protagonista da nossa história é muito mais bem resolvida pelos mais jovens, já inseridos nessa realidade constituída. Como se a “Sociedade do Espetáculo” de Guy Debord, tão alertada pelo cinema francês sessentista, ressurgisse como uma instituição oficialmente estabelecida.

O caminho natural da robotização, que transforma o deboche inicial em uma melancolia final, casa bem com a flexibilização do conceito de família. Quem estava ali assistindo talvez não tenha se dado conta de que esse é um caminho sem volta. Não há mais tempo para observar garotos brincando de simular lutas de samurais no meio do parque, a não ser que Herzog assim deseje – em uma quebra narrativa que assume de vez o godarismo clássico de “Uma História de Família”. O mesmo se dá na passagem em que um telefone sem fio é usado no topo de uma montanha. Por fim, nas palavras carregadas de obviedades de gurus espirituais, o filme deixa a questão: até onde vai essa crescente criação de expectativa por parte dos humanos?

4 Nota do Crítico 5 1

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