Fabian – O Mundo Está Acabando
Uma novela de referências
Por Fabricio Duque
Festival de Berlim 2021
É quase sempre necessário, quando se assiste a uma obra do cinema alemão, um conhecimento prévio dos condicionamentos comportamentais em seus costumes históricos, em especial pela geografia arquitetada de Berlim, o epicentro de uma esperada liberdade, apesar da consciência de um realismo pragmático e defensivo, em que desejos expressam-se por impulsivas casualidades, talvez pelo medo de que tudo mude no próximo dia. Entender que o povo alemão vive sempre alerta, entre o Expressionismo e a modernidade, por uma adaptação pressionada e urgente de um passado que parece não querer ir, é imprescindível para captar a ambiência entre épocas que o novíssimo cinema alemão busca construir: uma vanguarda “Sodoma e Gomorra” de cabaré submundo de moralismo orgânico, ingênuo e mais visual, lugar que possibilidades ganham catarses terapêuticas, ora pelo confronto do antigo com o novo, ora pela linguagem de rápidas comtemplações, ora por pequenas intervenções, como a de “pegar emprestada” sem pedir uma bicicleta.
No filme em questão aqui, “Fabian – O Mundo Está Acabando”, exibido na edição híbrida do Festival de Berlim 2021, sem sessão à imprensa, seu diretor Dominik Graf, híbrido entre documentários, ficções e seriados para televisão (com 53 créditos no IMDB, incluindo “The Beloved Sisters“), explicita o que foi analisado antes, quando inicia o longa-metragem de três horas com câmera subjetiva, com um que de cinema direto, por dentro de um metrô berlinense, nos dias atuais. Nós espectadores podemos inferir à cena final de “L’Apollonide – Os Amores da Casa de Tolerância”, de Bertrand Bonello. A narrativa de “Fabian – O Mundo Está Acabando” potencializa o roteiro com o excesso de liberdade do agir, assim, o filme soa mais como um exercício projetado de linguagem não lapidado, principalmente por seus artifícios mais óbvios e datados, e mesmo que queira buscar embasamento no fato de ser uma ressignificação de obra de época, traz um amadorismo cinematográfico dos primórdios do cinema alemão.
Dessa forma, “Fabian – O Mundo Está Acabando” é baseado nos romances de Emil Erich Kästner, escritor, roteirista e jornalista que traz a atmosfera cabaretista a suas obras. Sua carreira começou durante a República de Weimar com poemas, resenhas e ensaios repletos de críticas sociais e anti-militarismo, em diversos periódicos renomados àquela época. Este longa-metragem evoca a união de dois de seus livros, “Fabian: The Story of a Moralist” (1931) e “Going to the Dogs: The Story of a Moralist” (2013), formalizando que é acima de tudo uma novela, com seus núcleos, tempos fragmentados por elipses e narração com tom literário (descritivo de micro ações e spoiler do que acontecerá, como “dias chatos e infrutíferos no trabalho”), apresentando-se mais por referências importadas que pela tentativa de uma autoralidade, explicitamente quando almeja unir os seriados “Berlin Alexanderplatz”, de Rainer Werner Fassbinder (de 1980, do romance homônimo escrito por Alfred Döblin em 1929), com “Babylon Berlin” (do livro Volker Kutscher de 2007), criado por Tom Tykwer, Achim von Borries e Hendrik Handloegten.
Então, mais e mais chegamos à conclusão que “Fabian – O Mundo Está Acabando” “vai mesmo com os cachorros” e se assume uma obra de referências. De recortes de cenas presentes nos filmes alemães, sem esquecer naturalmente dos artifícios paralelos de incluir trechos históricos, a fim de fazer uma conexão da atualidade com o passado. Um dos exemplos é seu início que passeia por uma estação de metrô berlinense, à moda de um cinema direto, mais amador e urgente, inclusive permitindo surpresos olhares de transeuntes reais, tudo com o objetivo de “viajar” de forma “orgânica” ao ano de 1931, com Hitler e uma Alemanha em recessão. Esse prólogo de Nouvelle Vague alemã, de ressignificar a contemporânea com a experiência indissociável da memória da História, cria a liberdade poética da própria obra, que “aceita” até música de rock pesado e/ou as constantes mudanças da fotografia, ora saturada a de um arquivo antigo reencontrado, e/ou o toque teatralizado, parecendo ser um sonho, de uma festa vanguardista clandestina e que tudo é possível. Esta que fornece mais um indicativo a “Berlin Alexanderplatz” e “Babylon Berlin”. E/ou a sequência de “reconstituições” de notícias/histórias lidas/contadas. E/ou o ensaio de uma história de amor, com um que de “Jules e Jim – Uma Mulher Para Dois”, de François Truffaut.
“Fabian – O Mundo Está Acabando” busca em sua essência a crítica social: “guerra, inflação, desemprego”, a dignidade humana, o sistema em colapso (que “a última coisa que falta experimentar é o suicídio”), a sociedade “macilenta” e mercenária por dinheiro (a “necessidade faz o ladrão” – que guarda comida como “ração para emergência”) e busca a resposta para a pergunta retórica: “O mundo tem capacidade para decência?”. Pois é, não é só o diretor Dominik Graf que cai nas garras da maldição do “querer tudo”. Aqui, o roteiro acha que consegue abordar o maior número de questões sociais. Acha que só de levantar a problematização de “estações vêm e vão” já “ajuda” a disseminar a ideia tentando ser “moderninho” demais, como brigas aceleradas, pausas na tela. Não, não mesmo. Isso se chama utopia. E o mundo de hoje talvez não esteja mais preparado para ingenuidades ideológicas. “Sadista na plateia, loucos no palco”, diz-se sobre as “perversões da sociedade alemã”. Será uma metáfora?
Entre brincadeiras infantis, rostos deformados, pesadelos, “charadas sem metáforas artificiais”, “formalismo evitado”, “prostitutos”, crossdresser, protestos, “buracos infernais”, e até dramas à la novelas mexicanas de uma lágrima caindo no café, “Fabian – O Mundo Está Acabando” acontece sem acontecer, como um transe teatralizado de bagunçados instantes casuais circenses do protagonista Dr. Jakob Fabian, que “sofre de orgulho falso”, que afasta aprofundamentos com o expectador, talvez pelo excesso de sentimentalismos. “Fabian ou o Mundo Está Acabando” no final das contas preferiu o moralismo confortável não crítico que se “indispor” por manter a real crítica presente crítica do livro.