Estranhamento Contemporâneo: O Cinema de David Lynch

David Lynch

Artigo

Estranhamento Contemporâneo: O Cinema de David Lynch

Por João Lanari Bo

Nesses tempos em que, para muitos, cultura é sinônimo de entretenimento, os filmes de David Lynch conseguem fazer uma diferença: melhor ainda, produzem um efeito de estranhamento, algo que suspende temporariamente nossos mecanismos de inserção na chamada realidade. Claro, há sempre a possibilidade de rejeição, ou a simples repulsa—não faltam momentos de desconforto na sua obra. Para os que aceitam o embate, e também são muitos, sua obra recompensa, com todas obsessões e perversões a que temos direito.

Logo no seu longa de estreia, o inclassificável “Eraserhead”, lançado em 1977, Lynch disse para o que veio: um bizarro e aterrorizante olhar sobre um personagem às voltas com sexo oposto e procriação. Saltou aos olhos do pequeno, mas devotado público que adotou o filme nas sessões de meia-noite, a densidade enrugada da trilha sonora e o tratamento surrealista das imagens. Produção independente, tendo levado anos para chegar ao final, “Eraserhead” é um desses pesadelos audiovisuais que sugerem uma “continuidade entre as respostas fisiológicas e afetivas do corpo do espectador, por um lado, e as aparições e desaparições, mutações e inconsistências dos corpos na tela, por outro”, como ressaltou um crítico à época. 

O filme virou cult, os espectadores se entusiasmaram. Em 2004, a Biblioteca do Congresso norte-americano sacramentou o experimento de Lynch no National film registry, após extensa consulta popular. “Eraserhead” entrou para o panteão artístico e tornou- se patrimônio cultural da nação.

A visceralidade e as metáforas orgânicas do primeiro filme condensaram-se admiravelmente na segunda produção, “O Homem Elefante”, de 1980. Um único personagem concentra em seu corpo toda a deformação exposta no filme, aliás baseado em fatos reais. Descoberto por um anatomista em um circo de aberrações no fim do século 19, em Londres, o “homem elefante” tinha 90% do corpo deformado. O desconforto da sua presença na tela humaniza-se estranhamente no desenrolar da narrativa – no circo, era apresentado como a “versão mais degradante do ser humano”. 

Essa “naturalização” operada pela fita, que viabiliza a transição do grotesco da interioridade material para a superfície plácida dos relacionamentos humanos, foi a grande sacada do diretor, a pedra de toque que se tornou sua marca pessoal e balizaria sua relação com os produtores de Hollywood. “O Homem Elefante” atraiu grande público e sensibilizou a crítica, que o julgou uma louvável “síntese de compaixão e comedimento”.

Desconfortável e estranho

“Duna”, o próximo filme, foi uma ficção científica malsucedida—Lynch disse que os três anos de produção, metade na cidade do México, foram um “pesadelo”. Logo em seguida, com “Veludo azul”, em 1986, o diretor norte-americano iniciaria a série de produções autorais, “desconfortáveis e estranhas”, mas extremamente bem sucedidas, pelas quais é conhecido: “Coração selvagem”, “Twin Peaks, Os últimos dias de Laura Palmer”, “Estrada Perdida”, “Cidade dos Sonhos” e “Império dos Sonhos”, esse último lançado em 2006.

No meio do percurso, a série televisiva “Twin Peaks“, primeiro lugar no Ibope americano de 1990-91. A única exceção nessa sequência é “Uma história real”, de 1999, que narra, de forma linear e sutil, a tenacidade obstinada de um veterano da guerra em reencontrar o irmão.

Seu prestígio é mensurável pelos inúmeros livros e artigos escritos sobre ele: um estilo de fazer cinema, enfim, que sugere mais uma aventura para os sentidos do que uma suposta exploração da “lógica” narrativa: como tal, uma estética que se supera na sedução quase tátil do seu público. Recorde- se as cores fortes, texturas, trilha sonora, ruídos, sussurros, cenografia—tudo parece concorrer para um mundo à parte, um mundo dos mortos assim como contam os tibetanos, mas que também é ilusório, a exemplo do mundo real. Os comportamentos são erráticos, as histórias parecem não levar a lugar algum: estamos sempre na iminência de uma descoberta, mas que, à nossa revelia, não desejamos saber exatamente qual é. Essa hesitação, e a consequente receptividade do ilusório exacerbado, é o charme dos filmes de Lynch. E também, quiçá, a sintonia com um certo traço de ansiedade contemporânea.

Nos últimos anos, Lynch parecia sem paciência para as grandes produções: o IMDb registra curtas e clipes musicais, uma nova temporada de “Twin Peaks num canal de TV à cabo, em 2017, e a série “Today’s Number Is…” com episódios de 1 minuto. E a criação/roteiro de um documentário de título insólito, “Meditation, Creativity, Peace”, feito em 2012 (O filósofo esloveno Slavoj Zizek, que escreveu um excelente livro sobre Lynch, considerou uma “idiotice” a dedicação do diretor em difundir a prática da “meditação transcendental” na humanidade).

Mas reconhece nos filmes a obra de um “gênio”. Não apenas nas imagens, mas nas trilhas sonoras: basta conferir a trilha de “Estrada Perdida” — em que “Insensatez“, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes, desliza ao lado de David Bowie, Lou Reed e Marilyn Manson— para concordar com Zizek.

Especial David Lynch

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