Estou Pensando em Acabar com Tudo
Um ensaio sobre o tempo
Por Laisa Lima
Netflix
Para a psicologia, gerontofobia é o medo excessivo de envelhecer, podendo resultar em crises de ansiedade, quadro depressivo, e até ataques de pânico. No cinema, o assunto sempre rendeu boas narrativas, seja admirando seu decorrer, como em “Boyhood” (2014), de Richard Linklater, ou temendo seu resultado, visto “Amor” (2012) de Michael Haneke. Nas mãos de Charlie Kaufman, o tempo vira objeto de estudo, questionamento, e de uma arte cheia de vertentes.
“Estou Pensando em Acabar com Tudo” (2020), produção da Netflix dirigida e roteirizada por Charlie Kaufman, traz uma história pouco convencional, pouco linear, e pouco lógica, à la ele mesmo. Como pano de fundo, temos uma viagem entre Jake (Jesse Plemons) e sua namorada sem nome definido (Jessie Buckley) em direção a uma fazenda afastada da cidade grande, onde residem os pais do rapaz, que tem a intenção de apresentar sua companheira aos dois. Entretanto, tendo em vista os outros filmes com a participação de Kaufman, que serão abordados na sequência, é sabido que, a partir de certo ponto, é prezado muito mais a imaginação do espectador, do que um entretenimento fácil de ser consumido propriamente dito.
Conhecido por obras com alto teor inventivo e marcante caráter psicológico, como o que é proposto em “Adaptação” (2002), até hoje discutido na rodinha de cinéfilos por conta de sua dubiedade nos significados metalinguísticos presentes em seu roteiro e sua trama, Kaufman, aqui, guia um espiral sem saída: inúmeras questões e pouquíssimas respostas. Logo de cara o filme (através da narração da personagem principal e enquanto a câmera foca nos cômodos de uma casa que, intuitivamente, é desconfiado de que seria de suma importância) revela os pensamentos confusos da protagonista acerca de uma possível questão principal: terminar ou não com seu namorado. No andar do longa, a confusão de opiniões por parte da mulher, expostas por meio de suas ideias manifestadas de forma a serem ouvidas apenas por ela e pelo público, são reprimidas de um jeito a torná-las mais emboladas, contribuindo para a instigante necessidade de ser mostrado mais do que já está sendo instalado na tela.
Contando com o fato da própria moça se pressionar a pensar o contrário, fazendo da culpa e da dúvida, uns dos seus maiores companheiros durante toda a película, a situação pode ter o sentido de analogia ao gênero feminino, na qual as ideias e visões são quase sempre invalidadas, controladas e pouco ouvidas pelo outro sexo considerado como opressor, sendo isto mais escancarado no modo em que Jake interrompe sempre as reflexões internas da namorada, e, em certos momentos, sobressai suas vontades às da parceira, como na cena em que ele impõe o uso de um chinelo por parte da mulher.
Jake, genuinamente bem interpretado por Plemons, (aliás, além da aparente personalidade contida e submissa, assim como a de sua companheira, personagem interpretada por Buckley, um dos destaques do filme), deixa transparecer um incômodo com a presença de seus pais. A interpretação comprometida de Tony Collete e David Thewlis, transporta a dupla à um papel excêntrico, de indivíduos, ao mesmo tempo, controlados e controladores. A mãe possui trejeitos estranhos nítidos na forma em que se move, em que ri, e afins, revelando atitudes um tanto exageradas e aparentemente teatrais, manifestando um visível desequilíbrio e medo das reações do filho diante do encontro com os progenitores. O pai, menos alegórico e mais tacanho, levando em consideração suas opiniões e questionamentos pouco sutis, até com o trabalhado mostrado pela protagonista, é capaz de tornar, junto com a esposa, o ambiente desconfortável para a namorada de Jake, que traduz o sentimento de estranheza e tensão, naturalmente sentidos em um local onde uma desagradável luz forte e uma decoração rudimentar, cheia de artefatos antigos, vista por alguns como ultrapassada, está presente.
Tendo conhecimento de seus perfis, os familiares de Jake são alvos de dúvidas conforme as camadas apresentadas em “Estou Pensando em Acabar com Tudo” se desdobram, como, por exemplo, no esquecimento de algumas palavras por parte da mãe do personagem, sendo o rapaz, aliás, um grande foco de questionamento por si só, visto seu comportamento desgostoso diante da família. Talvez, o mais inexplicável fato da trama seja a repentina mudança na idade dos pais de Jake, que vão desde a aparência de mais jovens, até idosos, com a personagem de Tony, em seu leito de morte. As transformações ocorrem em curtos espaços de tempo e, novamente, a protagonista ainda sem nome, conduz o público a adentrar em sua própria falta de entendimento perante os acontecimentos, tornando apenas a casa, em um fator mais familiar, mediante todo o mistério já esperado ligado a um lugar onde nada pode-se esperar, exemplificado como um clichê do mítico porão cheio de arranhões na porta, e um quarto de razão incerta, contendo brinquedos da infância de Jake.
Poucas vezes o filme traz a sensação de total assimilação para todos os espectadores, os fazendo testar sua própria capacidade de ser sensível. Pequenas frases, pequenos planos, pequenos sinais, são de grande valia para a imersão na obra, tendo a atenta observação como algo necessário para interpretar os diálogos – edificados, por sinal – sobre assuntos cotidianos como arte e física, que permeiam todo o longa-metragem, participando da construção dos significados da história, que se sucedem desde indagações sobre relacionamentos, até incertezas sobre o passar do tempo.
Essa noção de tempo é trabalhada de modo devagar, paciente, arrastada, sem exatidão, sentida até pela protagonista – ainda sem nome – em alguns momentos, como no balançar dos pelos de um cão. Por isso, a viagem de carro parece durar uma eternidade, assim como o almoço de família, propositalmente “cozido” para a criação de um ambiente pouco coeso, sensação que pode perdurar até o final da obra. Afim de instigar o pensamento próprio dos espectadores a respeito da complexa narrativa, obrigando com que o audiência adentre a história, mas cada um de sua forma, podendo tornar cansativo o ritmo lento em que é embalado o filme, não excluindo a falta de leveza diante das inúmeras peças a serem montadas na história, possivelmente dispersando alguns tipos que buscam por apenas uma diversão sem pretensão alguma.
Ainda levando em conta o tempo, a todo instante, a visão da namorada de Jake, é citada sobre o passar dos anos, expondo, mais uma vez, sua mente e seus medos, como o de envelhecer; da solidão; da expressão externa; da aprovação dos pais; e de si mesma, fazendo dela a mais atingível dos personagens, já que suas concepções sobre os eventos são, em partes, compartilhados com o público, apesar de mudanças na personalidade da própria protagonista acontecerem em “Estou Pensando em Acabar com Tudo”, sugerindo, então, a perspectiva de uma fácil mutação dos indivíduos. As metáforas e citações de químicos e filósofos, também presentes no roteiro e explanadas pelo casal principal, são peças-chave para acompanhar estas transformações e para a compreensão das nuances e dos significados transmitidos em cada quadro na obra, começando desde seus primeiros diálogos até os últimos.
Em certo momento, Jake diz que imagens bonitas podem enganar os olhos do espectador, e, em “Estou Pensando em Acabar com Tudo”, o cuidado com a estética é certo, dando créditos ao diretor de fotografia Łukasz Żal e ao diretor Charlie Kaufman, que transferem um pouco da obra de Kaufman (que participou como roteirista) mais famosa, “Brilho Eterno de uma Mente Sem Lembranças” (2004), de Michel Gondry, em questão do ambiente de devaneio, da sensibilidade da trama e até da presença de nevasca, características um pouco mais trabalhadas na obra de 2020. O diretor, então, cria uma singularidade ao mudar tons frios de azul para marrom, em um mesmo ambiente, tal como a variação da forte tempestade de neve que paira quase todo o filme, em um clima de fervura presente na casa dos pais de Jake; além de fazer a câmera passear em travelling de cima para baixo, rente ao chão ou em direção à luz, brincando, mais uma vez, com a noção de tempo; em isolar certos elementos necessários, como o carro coberto de neve e a escola; nos contra planos de vários ângulos; ao criar, por intermédio do sentimento do inesperado, uma tensão constante; e ao carregar uma certa condição de pintura para a tela.
Como outro artifício auxiliar, é usada uma doce trilha sonora, com forte presença de cordas, que reforça o ar permanente de sonho surrealista, existente em, como modelos, alguns planos aparentemente desconexos entre si, e na escolha de cores não chamativas, com bastante utilização da luz e cenas em uma condição evidentemente fantasiosa. O diretor ainda conduz a película sempre se baseando, minuciosamente, nas falas (o que pode parecer maçante para alguns), sendo essas falas por vezes mais simples, e por vezes um pouco mais rebuscadas. Além de, vez em quando, antecipar a câmera à ação dos próprios personagens, como se não conseguissem prever o que estaria por vir.
A questão principal de “Estou Pensando em Acabar com Tudo” pertence ao julgamento de cada indagação provocada pelo filme, já que suas múltiplas interpretações podem variar conforme a emoção obtida perante a obra que, ao contrário de inúmeras produções elaboradas para se desenvolver sem fazer pensar. Essa dúvida inicial, pode desencadear um vasto campo de raciocínio, alinhado à elementos que corroboram com isso, como a falta de linearidade e as mutações vivida por todos em cada segundo da obra. Com um teor de estudo do ser humano e sua psique, a película incorpora reflexões intertextuais profundas e nada diretas, obrigando o espectador a embarcar no que está sendo observado, introduzindo-se em um universo de difícil compreensão, onde, visualmente, uma certa beleza pode ser convidativa. Porém, há quem não esteja disposto a se aprofundar tanto em um mundo com um ritmo mais lento, e que motiva o senso crítico o tempo inteiro, sendo, assim, um longa-metragem que não serve para todos os momentos. Independente dos méritos e deméritos da obra de Charlie Kaufman, é possível dizer, obviamente, que não há universalidade nos gostos de qualquer público. E muito menos nos significados de seus filmes.