Espírito de família
Ausência presente
Por Victor Faverin
A busca pela redenção já produziu grandes histórias cinematográficas. De todas elas, ao lado do policial arrependido pelos erros da carreira, talvez a mais explorada tenha sido a do pai ausente. O homem que dedica tempo excessivo à construção da carreira, às viagens, à busca por um legado e, mesmo quando está em casa, os filhos e a esposa não o sentem presente. Esse é o mote do longa metragem francês “Espírito de família” (2020), dirigido e roteirizado por Éric Besnard (“O Sentido do Amor”, 2015) que estreia hoje no Brasil em plataformas digitais. Como decorrência natural do desenvolvimento da trama, o patriarca passa a enxergar a vida por outro prisma (não importa em virtude de qual motivo porque o desfecho será quase sempre o mesmo) e se empenha em aconselhar o filho mais velho (Guillaume de Tonquédec), tido por todos como puramente egoísta, a não reproduzir o seu comportamento.
Os conselhos do pai (François Berléand), aqui, aparecem em óbvios dizeres travestidos de pílulas de sabedoria (semelhante a um realejo e seus bilhetes da sorte, lembra?), como se a lição a seguir fosse de tamanha obviedade que a pessoa que inicialmente cometeu os erros só os fez porque assim desejou, por confessa preguiça de acertar. Todo esse clima é embalado por uma trilha sonora evocativa que tem o auge da previsibilidade em Father and Son, do cantor e compositor Cat Stevens. “Eu já fui como você é agora e sei que não é fácil”. Pois é, todos sabemos. Como se ficar irritado por alguém estar atrapalhando a sua concentração durante uma atividade que exige atenção e esmero fosse crime. Para completar o lugar-comum, o primeiro e o segundo ato de “Espírito de família” reforçam o conceito de que “você pensa que tem tempo, mas é o tempo que te tem”.
O tempo em tela, aliás, é dividido por subtramas à espera de desenvolvimento: a pergunta que não é feita, a doença que desaparece de repente, a superficialidade do afeto enfim demonstrado e a atmosfera enlutada que, ao invés de fazer refletir e sofrer, resigna, com raras exacerbações. Como dizia o escritor russo Anton Tchekhov ao explicar sobre como evitar desperdícios narrativos, “ninguém deve colocar um rifle carregado no palco se ninguém estiver pensando em dispará-lo”. E isso independe do tipo de gatilho. Muitos momentos do longa carecem de propósito, de objetividade. Ao mesmo tempo, o alívio cômico (sem um personagem designado para a tarefa, ao menos), quando vem, é telegrafado e não exige do público mais que um leve movimento de canto de boca.
Parte da comicidade – ou falta dela – e também fator de união entre a família se deve, em parte, ao rugby. Poderia ter sido qualquer outro esporte que não faria diferença ao filme, mas a modalidade de intenso contato físico aparece na trama em decorrência do jogador que está triste por ter sido vendido para um time de fora e quer voltar ao lar. No desfecho de “Espírito de família” é através desse personagem que temos a condução de uma história que, se houvesse sido explorada anteriormente, poderia ter dado outro rumo à trama: a manutenção de uma relação que não tem mais motivo de existir. Mas isso iria contra o tom agridoce empregado no longa, que mantém como ponto forte as paisagens, a fotografia de cores quentes – semelhante a “Sob o sol da Toscana” (2003) – e a relação entre os dois irmãos, ainda que não existam paixões em comum que os una.
A fraternidade, aliás, é um elemento que pode ser amplamente examinado no cinema, ainda mais quando ela é, eventualmente, carregada da predileção do pai por certo filho. Enquanto um teve medo de seguir seus passos por não querer ficar sob a sua sombra e ser eternamente comparado, o outro deu voz à veia artística e se tornou um escritor de sucesso, sendo o único capaz de ouvir e enxergar o pai falecido – ou ao menos essa é a forma que tem de lidar com o luto. “Espírito de família” teria se beneficiado se mostrasse aspectos da infância dos irmãos e não apenas reforçasse a ausência do pai como uma característica tão distante da que é vista em tela. Afinal, ensinar a amarrar os tênis, mesmo que de forma errada, ainda é estar presente, do mesmo modo que utilizar a câmera de trabalho para registrar momentos em família denota, no mínimo, carinho.