Mostra Um Curta Por Dia A Repescagem 2025 Junho

Ernest Cole: Achados e Perdidos

Fleurette africaine

Por João Lanari Bo

Festival de Cannes 2024

Ernest Cole: Achados e Perdidos

Poucas vezes na história das vicissitudes humanas um punhado de fotografias produziu efeito perturbador como as que Ernest Cole, negro e sul-africano, captou em seu país – tomado, no instante em que ele pegava na sua câmera, pelo absurdo do apartheid, regime de segregação racial que existiu na África do Sul por quase cinco décadas, de 1948 a 1994. “Ernest Cole: Achados e Perdidos” (2024), documentário dirigido pelo haitiano Raoul Peck, narra esse verdadeiro percurso épico individual, utilizando sobretudo fotos e texto em off, inspirado nos diários de Cole (e vocalizados com maestria pelo ator LaKeith Stanfield).

Fotografias circulam, imagens tem um caráter inefável que nenhuma segregação é capaz de segurar. Cedo, Cole percebeu que a câmera poderia ser um meio de superar aquele imediato absurdo, aquela opressão permanente que dividia brutalmente os espaços entre brancos e negros. Em meados dos anos de 1950, a iluminação – o adolescente, nascido em 1940 em Eersterust, perto de Pretoria, tomou contato com o olhar acurado de Henri Cartier-Bresson. O livro que caiu em suas mãos foi o registro sobre a vida cotidiana na Moscou soviética que o fotógrafo francês publicou em 1954. Momentos espontâneos com significado, mistério e humor, organização visual, contrastes e sombras: como resumia Cartier, suas fotos perseguem o momento decisivo, o instante mágico em que o mundo se encaixa em ordem e significado aparentes.

Ernest Cole percebeu no ato que seu punch com as imagens estava ali. Em “Ernest Cole: Achados e Perdidos”, em sua maior parte uma (bem) elaborada sequência de fotos de Cole, a construção do olhar do sul-africano é realçada pelas sutis trucagens cinematográficas, ligeiros deslizes e aproximações, de certa forma vitalizando as imagens originais. Mas, enquanto o francês se autocaracterizava como um “ladrão” de momentos espontâneos, Cole percebeu que estava coletando evidências sobre o patético funcionamento de uma sociedade totalitária, em que às vezes o monstro olha para mim.

O monstro podia manifestar-se de distintas maneiras: pessoas negras forçadas a trabalhar como empregadas domésticas para empregadores brancos, ou trabalhadores em condições indignas nas minas de diamantes, platina, ferro e ouro que eram o baluarte do regime; signos de interdição para negros em praticamente todos os ambientes urbanos comuns – whites only, europeans only; e policiais (alguns também negros) interpelando arbitrariamente negros. “Ernest Cole: Achados e Perdidos” traz ainda algumas das fotos, tiradas por terceiros, que mostram o franzino Ernest com sua máquina, inquieto e arguto, no canto da imagem – em situações coletivas de opressão, banalizadas na rotina sul-africana.

Foi a época da baasskap, combinação das palavras baas (chefe, mestre) e skap (sufixo que indica estado ou condição), que se autoproclamava uma filosofia política de defesa da dominação social, política e econômica da África do Sul por sua população branca minoritária em geral e pelos africâneres em particular. A população negra, por sua vez, era obrigada a carregar uma espécie de passaporte interno, uma carteira de identificação com dados sobre trabalho, domicílio e emprego, que poderiam ser apreendidas por policiais sem aviso prévio. Ernest Cole arriscava a vida praticamente todos os dias, em suma.

Em 1966 Cole era um fotógrafo conhecido em seu país, fazia parte da revista “Drum”, famosa por suas reportagens do início dos anos 1950 e 1960 sobre a vida nas cidades sob o apartheid – apesar de abafados, sempre existiram na África do Sul setores contrários ao modelo racista. Aos 26 anos, consegue autorização para viajar a Nova York: logo fechou contrato com a Random House para publicar seu livro de fotos “House of Bondage”, que rapidamente se tornou o retrato definitivo da segregação institucionalizada em seu país e o elevou à fama.

Ernest Cole continuou fotografando, foi ao sul dos Estados Unidos e flagrou a devastação pós-escravidão, em Nova York a crônica de uma cidade efervescente. Mas o exílio, frustração profissional, depressão e, ocasionalmente, noites sem-teto nas ruas deixaram marcas profundas. Ficou pelo menos oito anos sem tocar na câmera, errando a esmo pelos bairros. Tentou mudar de país, foi para a Suécia, mas também não vingou. Acabou morrendo de câncer, poucos dias após Nelson Mandela ser libertado da prisão.

Sua mãe foi ao seu encontro, nos últimos dias no hospital. Voltou levando a urna funerária com os restos do filho.

No velório, prestigiado por artistas e músicos, ouvia-se a canção de Duke Ellington Fleurette africaine (ou African Flower), gravada em 1962 com Charles Mingus e Max Roach.

4 Nota do Crítico 5 1

Conteúdo Adicional

Apoie o Vertentes do Cinema

Deixe uma resposta