Eneida
Um filme caseiro
Por Pedro Mesquita
Durante o É Tudo Verdade 2022
Se não cessamos de lançar mão da análise comparativa para comentar os filmes da nova edição do É Tudo Verdade, é porque a experiência de um festival de cinema favorece a aplicação desse método. Façamo-la uma última vez, então: “Eneida” faz lembrar alguns dos outros filmes em exibição, por conta de uma disposição que compartilha com eles — o retrato pessoal.
Neste filme de Heloísa Passos, a câmera não é aquele objeto que se pretende “transparente” e cujo controlador — o diretor — não se faz perceptível, como costumamos ver no cinema de vocação clássica; aqui, câmera e diretora são quase que uma coisa só. Os movimentos e posicionamentos espontâneos da câmera estão longe de sugerir neutralidade: eles sugerem proximidade, afetividade. Estamos no domínio da “escrita de si”, essa tendência tão em voga no cinema contemporâneo. Nesta edição do festival, “A História do Olhar” (Mark Cousins) realizou-a com algum sucesso — embora modesto. No filme do diretor britânico, porém, por mais que o ponto de vista seja pessoal, a identificação do espectador ainda é perfeitamente possível, visto que a experiência do olhar é universal. Em “Eneida”, vemos contada uma história que só pode pertencer à própria diretora: a história da sua própria família.
Maísa, irmã de Heloísa, está separada da família há muitos anos devido a uma briga; recusa-se a estabelecer mesmo o mais breve dos contatos. Logo, vemos Heloísa sugerir aquela que será a motivação por trás da realização do filme: ele sente que o grande desejo de sua mãe, Eneida, é ver a família reunida novamente. Tomam, então, a decisão de ir atrás dela a fim de conseguir a tão sonhada reconciliação.
Ao longo da viagem, Heloísa revela o motivo de ter se tornado cineasta: “é assim que eu sei me aproximar das pessoas”. A organização de uma produção de cinema em torno daquele imbróglio familiar servirá, então, como um meio de conectar mãe e filha ao longo do trajeto percorrido. As duas conversam — ora espontaneamente, ora mais rigidamente, por meio de entrevistas — e, de fato, passam a se conhecer melhor; relembram histórias antigas, descobrem histórias novas, fazem piadas… as cenas entre as duas rendem os melhores momentos do filme, porque dizem respeito àquilo que acontece apesar do desenvolvimento da narrativa, às margens do conflito principal. São nesses momentos que as personagens podem relaxar, contar histórias, divertir-se apesar das situações adversas que a vida lhes apresenta…
Quanto ao desenvolvimento da narrativa em si, não verificamos o mesmo êxito. Não cabe aqui resumir toda a trama, portanto pulamos ao essencial: o caráter anticlimático do final. Todas as expectativas — por parte do espectador e das próprias personagens — são frustradas: no final das contas, Maísa não muda de ideia e recusa novamente a proximidade da família. O final de “Eneida” nos pega de surpresa pelo seu caráter absolutamente ordinário, desencantado: não há final feliz para recompensar o sofrimento das personagens.
Não podemos, é claro, culpar a diretora por isso: o documentário se nutre daquilo que a realidade lhe fornece. O que podemos questionar, por outro lado, é a decisão de encerrar o filme imediatamente após a frustração, naquele melancólico passeio de carro. O final insosso sugere uma falta de reflexão sobre a matéria, uma falta de disposição na etapa de montagem, de organização do material, a fim de conferir-lhe um efeito que ultrapasse a soma das suas partes. Espera-se que o filme vá além, “amarre suas pontas”, mas ele para ali mesmo.
Não condenamos de forma alguma o final trágico, condenamos o final trágico insensível. Não é porque o filme apresenta um conteúdo trágico que o seu final não deve ser pungente. Muito pelo contrário, como não cansou de nos provar Kenji Mizoguchi: “As Irmãs de Gion” (1936), “Contos da Lua Vaga” (1953), “Intendente Sansho” (1954)…
“Eneida” não funciona — e sequer deseja funcionar — sob os moldes da narrativa clássica; tampouco funciona como uma obra pessoal, pois a experiência estética apresentada pela diretora é absolutamente indistinta de grande parte da produção contemporânea de documentários “introspectivos” (de modo que não é necessário abrir parênteses para comentar os procedimentos formais da obra). Qual é, então, o seu lugar no mundo? Talvez este seja um daqueles filmes cujo apelo é muito mais forte para um grupo específico de pessoas — a própria família da diretora, ou aqueles que de alguma forma se identificam com as personagens retratadas — que para todos nós.
A despeito da escala da produção, “Eneida” é um filme caseiro; a isso se devem as suas maiores forças e as suas maiores fraquezas.