Em Busca de Anselmo
Microfísica do Poder
Por João Lanari Bo
O poder deve ser analisado como algo que circula, ou melhor, como algo que só funciona em cadeia. Nunca está localizado aqui ou ali, nunca está nas mãos de alguns, nunca é apropriado como uma riqueza ou um bem. O poder funciona e se exerce em rede. Nas suas malhas os indivíduos não só circulam, mas estão sempre em posição de exercer esse poder e de sofrer sua ação, nunca são o alvo inerte ou consentido do poder, são sempre centros de transmissão (Michel Foucault)
A citação é longa, mas funciona bem como chave de leitura da série documental “Em Busca de Anselmo”, cinco episódios que circulam em torno de José Anselmo Santos – ou Alexandre, ou Daniel, ou Paulo, ou Renato, ou Sérgio, ou Jônatas, o leal amigo de Davi dos relatos bíblicos, para lembrar alguns de seus codinomes. Mais conhecido como cabo Anselmo pela passagem na Marinha – alcunha fantasiosa, pois na Marinha não existe “cabo” – José Anselmo transformou-se no mais célebre caso de traição política da história recente do Brasil. Entre inúmeros eventos, visíveis e invisíveis, talvez o mais conhecido seja o massacre da Granja São Bento, quando seis militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR) caíram em uma chacina na Região Metropolitana do Recife, em janeiro de 1973. Entre os cadáveres estava Soledad Barret Viedma, 28 anos, que à época vivia com Anselmo. A Granja de São Bento foi o cenário escolhido pelo delegado Sérgio Fleury para encenar um tiroteio entre militantes da VPR e agentes da repressão – todas as vítimas foram presas em locais distintos, e levadas à Granja onde foram torturadas e mortas. Armas foram toscamente encaixadas nas mãos dos corpos para sugerir um confronto entre guerrilheiros e militares, que nunca existiu. O delator por trás da tragédia foi o cabo Anselmo. A trama que levou a esse desfecho iniciou-se em 1971, quando Anselmo começou a trabalhar para o DOPS – se foi convocado ou se voluntariou-se para tal é uma dúvida que ele mesmo propaga – e foi mandado ao Chile para retomar contatos com Onofre Pinto e outros integrantes da VPR. Onofre, torneiro mecânico, militar e guerrilheiro, foi um dos principais dirigentes e fundadores da VPR: contrariando informações que chegavam do Brasil sobre a duplicidade de Anselmo, acreditou nele e articulou sua ida para Recife. A descrição dessa complexa rede de poder, nos depoimentos de ex-companheiros da Marinha, membros da VPR e outras organizações, além de agentes da repressão – antigos colaboradores de Fleury – é entrelaçada habilmente na narrativa da série, criando uma materialidade histórica consolidada em diferentes visões e memórias. Usando uma metáfora um tanto pretensiosa, é como se a história viesse à luz como um cristal, com diferentes ângulos e reflexos cristalizando uma imagem-tempo – ou uma imagem-cristal.
Se o espectador optar por fazer uma maratona de “Em Busca de Anselmo”, fatalmente vai se defrontar com uma complexa teia de camadas subjetivas em torno de distintos centros de transmissão de poder, tal qual as imagens extraídas do tráfego das redes sociais na internet – influencers poderosos aparecem como pontos adensados em meio aos fluxos de interação. No caso, os influencers são aqueles personagens que, de alguma forma, exercem poder ou sofrem alguma ação de poder, contribuindo para o desenrolar dos acontecimentos. Deixando as abstrações de lado, não custa lembrar: estamos em plena ditadura militar, iniciada em 1964 e aprofundada em 1968 com o Ato Institucional No. 5. Cabo Anselmo, um influencer que primou pela ambiguidade absoluta, era um jovem marinheiro que foi alçado, graças ao carisma e oratória, ao cargo de Presidente da Associação dos Marinheiros e Fuzileiros Navais – e que, num discurso explosivo, pronunciado na solenidade de aniversário da Associação, em 25 de março de 1964, ajudou a precipitar a queda do governo João Goulart e o golpe do dia 31. A época era fervilhante: dentre os eventos do aniversário, ocorreu uma exibição de “O Encouraçado Potemkin”, sim, o clássico que Eisenstein realizou em 1925 sobre a revolta dos marinheiros russos, em 1905. Na sessão, realizada no auditório do MEC, os marinheiros brasileiros assistiram ao filme ao mesmo tempo em que ouviam explicações sobre a vida no porto de Odessa e as dificuldades com que eles se defrontavam no presente.
A sobrevida de Anselmo – ele morreu em março de 2022, com 80 anos – é um desses mistérios que a combalida razão cartesiana desconhece por completo. Como um personagem oriundo de uma zona fantasma da História, realçado pelo colorido esmaecido das imagens, ele percorre ambientes radicalmente distintos, de Cuba aos corredores do DOPS, passando pela clandestinidade revolucionária, sempre ganhando dinheiro – como ressalta um dos entrevistados – e não transparecendo nenhum remorso pelas delações que fez. Para o secretário-geral do Partido Comunista, Luiz Carlos Prestes, Anselmo já era infiltrado antes de 1964.Todas as suspeitas em relação a Anselmo, que nem sequer era cabo da Marinha, são válidas: ele construiu a própria jornada e identidade de maneira confusa e nada confiável, afirmou o diretor e roteirista da série, Carlos Alberto Junior. Acompanhar “Em Busca de Anselmo” sugere, ao fim e ao cabo, que o devir histórico passou a ser cada vez mais percebido como um “espaço de dispersões”, com diferentes movimentos convergindo e divergindo, não necessariamente progredindo em direção a um objetivo comum. Em certo momento do programa, o próprio Anselmo, comentando (e rindo) sobre suas múltiplas identidades, ratifica: eu não existo.