É Difícil ser um Deus
Deus está cansado
Por João Lanari Bo
Festival de Rotterdam 2014
Vivemos em uma época que muitos chamam de pós-moderna, onde os ideais iluministas que eram defendidos durante a era moderna aparentam um indisfarçável declínio – a queda do muro em Berlim, em 1989, é insistentemente lembrada como marco dessa ruptura histórica. O projeto socialista caiu, e a globalização capitalista se impôs, para o bem e para o mal. Imagine, caro leitor, vivenciar uma transição dessas do outro lado do muro, na União das Repúblicas Socialistas Soviéticas, a URSS: como absorver essa reviravolta e criar produtos simbólicos que possam, de alguma maneira, exprimir o jump-cut – para usar uma metáfora cinematográfica – do salto experimentado. Não é tarefa fácil: a tentação de aventuras que restaurem o poder e a gloria anteriores é permanente, como o demonstra a invasão da Ucrânia em fevereiro de 2022.
“É Difícil ser um Deus”, finalizado em 2013, último filme de um dos mais densos e estimulantes diretores russos, Aleksei German, estabelece uma rota surpreendente para mergulhar nesse delicado assunto, a (tumultuada) passagem do tempo no imenso espaço russófono. Em um futuro distante, viajante da Terra visita outro planeta similar ao nosso, mas “800 anos atrasado”: sua missão é ajudar o desenvolvimento da sociedade em direção a uma era do Renascimento/Iluminismo. O livro homônimo que serviu de base para o filme, publicado em 1964 pelos irmãos Strugatsky – os mesmos que inspiraram Andrei Tarkovsky em “Stalker”, de 1979 – propunha-se a denunciar que religião e fé funcionam como instrumentos de opressão, inibindo o progresso científico da humanidade. A URSS, em tese, era o resultado tangível desse progresso – o lugar privilegiado em que nasceu o “homem novo soviético”, signo do “novo mundo”, resultado concreto do processo histórico evolutivo.
Aleksei German começou a pensar em adaptar o livro ainda nos anos 60, na vigência do comunismo. Atravessou os percalços experimentados pelo seu país até aterrissar no ano 2000, quando iniciou as filmagens (ano em que Putin chegou ao poder). A locação foi o entorno do castelo Tocnik, na República Tcheca, os trabalhos prolongaram-se até 2006 – German faleceu nos momentos finais da pós-produção, em 2013: mulher e filho, também cineasta, terminaram o filme.
“É Difícil ser um Deus” não faz concessões: é pós-apocalíptico, pós-narrativo, é uma sequência de espaços-tempos sem distanciamento, é um pântano grotesco que desafia nossa razão espectatorial ao mesmo tempo que afunda nossa sensibilidade convencional num mar de lama, vermes, intestinos, excrementos, dejetos – é uma ordem visual que sugere, como notaram críticos atentos, os cenários pictóricos do formidável Hieronymus Bosch. Lá estão crianças que brincam com cadáveres apodrecendo na chuva, lixões fumegantes, caminhos intransitáveis, e malucos semi-humanos de um submundo-tornado-mundo. Nativos locais riem compulsivamente e não param de olhar a câmera – a celebrada quarta parede dilui-se na entropia das imagens.
Nesse mundo, Deus está cansado. O Homem não parece ser a joia da criação. “É Difícil ser um Deus” tem um guia no movimento browniano de sua linguagem: Don Rumata (Leonid Yarmolkin), tido como filho ilegítimo de um ser divino. Ele veio da longínqua Terra para acelerar o fim do feudalismo no planeta atrasado – tal como a revolução bolchevique fez com a monarquia czarista. Rumata, o semideus, atravessa quase todas as cenas do filme, arrogante e impaciente, no meio de um conflito feudal – onde Rumata se esconde, os locais se escondem e fogem. Por todos os lados, rostos enrugados, sorrisos maliciosos, bocas desdentadas e órbitas oculares vazias. Cenografia e câmera virtuoses promovem a imersão nesse ambiente fétido, viscoso, amoral, onde fluidos corporais em estado de ebulição se mesclam o tempo todo – um pesadelo sensualizado, misteriosamente infantilizado.
O Caos primordial reina supremo, e não há fim para ele – e não há como escapar a alusões de mitologias religiosas. Misteriosamente também, o hiper-realismo quase documental de “É Difícil ser um Deus” liga-se ao conto-de-fadas: Aleksei German refere-se orgulhosamente como, no seu exame de admissão para o Instituto Estatal de Teatro, Música e Cinema de Leningrado, declarou que o único filme soviético verdadeiro era “Cinderella” de 1947, de Nadezhda Kosheverova – pura fantasia em pleno stalinismo. Fantasia, naqueles tempos, era estratagema para escapar da censura – fabulações esópicas, como se dizia na URSS.
O nobre Don Rumata, um homem do futuro, foi concebido durante a prevalência do idealismo soviético. Uma alegoria distante do sistema, que German atualizou – e radicalizou – para a contemporaneidade do século 21, violento e demasiadamente humano.