Curta Paranagua 2024

Diga quem sou

Pedofilia em série

Por João Lanari Bo

Telluride Film Festival

Diga quem sou

Diga quem sou”, que Ed Perkins realizou em 2019 depois de cinco anos persuadindo os irmãos Alex e Marcus Lewis, é um produto sui generis: sua contundência é de tal maneira avassaladora, que não cabem reducionismos sobre sua eficiência comercial, sobre se segura ou não o espectador saturado do streaming. Não – estamos diante de um registro audiovisual que vai muito além das categorias utilizadas pelos espectadores apressados em ratificar as respectivas subjetividades consumistas. A noção de spoiler, por exemplo, uma espécie de fantasma demolidor de textos críticos, desses que polvilham no ciberespaço, não tem aqui serventia: trata-se de um documentário sobre uma mãe pedófila que abusava de seus filhos gêmeos, Alex e Marcus, e os compartilhava com amigos afins. Não se trata de revelar ou não o fim da história: o drama, “baseado em fatos reais” como dizem os letreiros cinematográficos, supera, em muito, quaisquer veleidades espectatoriais. O ethos do filme está em outro lugar, e se constrói ao longo da hora e meia de duração. A questão é: o que você faria com seu irmão gêmeo, emergindo de três meses de coma aos 18 anos, provocado por acidente de moto, completamente amnésico? Como conciliar a função da memória com um passado doloroso e inenarrável? Como, enfim, refazer a história psíquica do seu gêmeo idêntico, seu espelho e sua imagem?

Perkins merece crédito por reabrir essa profunda ferida emocional, com o respeito e cuidado que ela merece. Mandou construir um estúdio minimalista para captar – e confrontar – depoimentos dos irmãos, modulando a distância entre o conhecimento de Marcus das situações de abuso sexual – ele é o polo consciente – com a inocência de Alex que, saindo do hospital e chegando em casa era, nas palavras do irmão, “um espaço negro e vazio… você perdeu tudo em sua vida e começa a partir de uma tela em branco; imagine como isso seria assustador”. Em “Diga quem sou”, Alex é o polo inconsciente em estado bruto, como se estivesse no líquido amniótico materno. Marcus inventou uma narrativa de felicidade familiar para amenizar a reentrada do irmão na realidade, mas também para se autoimunizar dos traumas pregressos – em vez de viagens idílicas de férias, os dois eram abusados sexualmente pela mãe e amigos. Alex e Marcus são filhos de Jill Dudley, uma debutante – na sociedade inglesa, isto significa jovem rica que frequenta eventos sociais como forma de ser apresentada a outros jovens de alta posição social – que se casou com John Lewis, um “homem quieto, decente e nervoso”, e teve os gêmeos em 1964. Tragicamente, John morreu em um acidente de carro poucas semanas após o nascimento deles, e Jill surtou: deixou os meninos num orfanato e teve um “despertar sexual”, alternando casos efêmeros e boemia até casar-se com Jack Dudley, 20 anos mais velho que ela, com quem teve mais dois filhos, Oliver e Amanda. Da rejeição dos gêmeos ao abuso sexual, foi um trajeto psicótico.

Jill tinha uma tenda de antiguidades na Portobello Road, em Londres: colecionar objetos usados e antigos era sua obsessão, além de geleias. Era dali que articulava as visitas de seus filhos aos homens que abusariam sexualmente deles, um de cada vez: em geral não acompanhava as sessões, mas às vezes ficava para assistir; normalmente, pegava o filho no dia seguinte. Certa vez, com 12 anos, Marcus e Alex foram encarregados de servir canapés e bebidas em uma festa em Londres, oferecida por um amigo de Jill. Na festa estava um dos abusadores de Marcus. “Vi um homem na sala de estar que tinha feito coisas inacreditáveis comigo: e tive que servir uma bebida para ele”. Com 14 anos, Marcus conseguiu escapar de um artista pedófilo, e na manhã seguinte encarou a mãe – as “sessões” acabaram ali. Segue-se um longo silêncio intrafamiliar: durante anos, nunca se falou sobre o assunto, nem mesmo entre os gêmeos. Quando tinham 32 anos, morre o padrasto – “certamente ele não sabia de nada”, ao que parece – mas que os tratava com desprezo: no leito de morte, pede perdão, que Marcus nega. Cinco anos depois, Jill morre de tumor cerebral: Alex é o único que chora no enterro. No armário da mãe, encontram brinquedos sexuais, lingerie, presentes não abertos de familiares e amigos para as crianças, roupas luxuosas e cartas de vários amantes. E dinheiro: ela tinha herdado uma pequena fortuna, que escondia. O mais perturbador foi a descoberta de uma foto dos gêmeos nus, com as cabeças cortadas. Quem descobriu foi o meio-irmão Oliver, que a entregou “sem dizer uma palavra”.

Oliver Dudley achou difícil assistir a “Diga quem sou”: durante uma exibição privada antes do lançamento, passou mal e pediu para interromper a projeção. “Meus irmãos disseram ao mundo que nossa mãe abusou de nós”, lamentou-se em entrevista. Não se sabe quanto Oliver sofreu com os abusos da mãe: segundo Marcus, ele foi enviado apenas uma vez para um amigo de Jill, alguém chamado Patrick. Oliver não concedeu entrevista para o documentário. Preferiu o silêncio.

4 Nota do Crítico 5 1

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