Deserto Particular
Trampolim de personagens
Por Ciro Araujo
Mostra de São Paulo 2021
A escolha para o representante brasileiro do Oscar soou ousada: “Deserto Particular”, de Aly Muritiba, continua a tendência do cineasta de investigar um mundo de masculinidade fragilizada e turva, cujo caminho é inegavelmente necessário percorrer para, por fim, encontrar uma espécie de paz interior. Ou ao menos algo que seja próximo a isso. Para completar a ousadia da seleção para a Academia, o contexto lançado forma também a cereja do bolo: dois personagens, originados do mundo militar e do mundo religioso – mais precisamente, o crente. Tais pontuações formam uma bolha perfeita politicamente. Afinal, a escolha é também política.
Muritiba, que escreve o roteiro, sistematicamente decide já de antemão construir seus personagens como dispositivos únicos. Se é que pode ser chamado de polêmica, pois talvez já seja muito mais uma decisão errada em vez do primeiro adjetivo, a escolha de produzir uma personagem trans que permite uma espécie de distorcida redenção do suposto protagonista. Suposto porque o diretor, em caráter repetitivo, decide inverter a ordem de seu longa-metragem anterior “Ferrugem”. Aqui, o hétero-cis dá espaço para uma transição para outra história envolvendo a personagem LGBTQIA+. A maior questão é como Muritiba decide fixar agora o que se torna uma escolha premeditada, já que o transporte é realizado em meio ao filme após sintetizar alguns dos objetivos da trama. Como passo instigante realmente cria uma alavanca situacional para o roteiro. “Subversivo”, alguns diriam.
“Deserto Particular” na realidade é uma obra que não se atenta tanto aos seus próprios afetos. Quando olha por determinado tempo para o personagem “hétero” de Daniel (interpretado por Antonio Saboia), há de se enxergar uma direção instigante, apesar de claustrofóbica e certamente exagerada. Apesar de tudo, não toma seu próprio tempo para se estruturar emotivamente. Essa mudança de visão do ponto de vista rudimentariza o debate sobre sua própria masculinidade. Enquanto seu começo é um beabá de explicativas para característica de fragilidade, o longa-metragem decide validar o resto de seu personagem, em uma tentativa de criar empatia para os atos de Daniel. É possível claramente encontrar, portanto, a crítica sob a ótica de responsabilidade e formação cultural que uma obra possui, um peso que carrega consigo naturalmente. Enquanto percorre para o olhar de Robson (atuação de Pedro Fasanaro), personagem trans, seu momento traz uma violência multidimensional que possuiria espaço caso ele já não fora dado para o protagonista anterior. O clímax no final das contas do cis é a rotina do trans.
A desconstrução imagética – que palavra mais chique – não vale nada, enfim. Os toques suaves tão perceptíveis de Karim Aïnouz não servem para mais nada além da própria imagem. Há quem puxe a sardinha da fotografia, que compreende muito bem o conceito de calor, que complementa como talvez a melhor pontuação da obra de Muritiba. Aly, preocupado com a dualidade do país que mais mata travestis e pessoas trans no mundo, entendeu que paralelamente existe uma hipocrisia confusa do brasileiro: é também a nação que mais assiste pornografia relacionada ao tema. Mas, por mais categórica seja o olhar do cineasta, a obsessão que interliga com uma ponte tão esquisita para fornecer fogo ou alimento emocional ao protagonista, limita completamente o debate. Quando os efeitos de setpieces são aplicados, isto é, quando há uma organização de direção dentro da cena, parecem que são amadores ou que ao menos não se movem, não fluem. Assim, é explicado como não existe um derramamento emotivo quando a conversa sobre um personagem servir de estepe para a outra é superada; pois não há mais profundidade. Em seu outro mais interessante passo, o cineasta promove um percurso a respeito de noções de liberdade e comparações ao urbano e rural. Talvez haja aqui uma proposta mais didática para fazer trampolim aos personagens construídos.
“Deserto Particular” com certeza desempenha o papel bem para um representante brasileiro do Oscar. É capaz de chamar a atenção para uma temática que é, por mais estranho que seja falar sobre pois é delicado, propício para o país tropical em que o filme foi realizado. Ele esquece de ser no mínimo delicado, se perde em seus caminhos e não consegue ao menos produzir individualidade dentro dos personagens. Mas não é possível negar que essa “subversividade” é passível para um contexto complexo atual e aproveitar uma fatia da Academia que cada vez mais anda fragilizada e pressionada a aceitar narrativas externas. É uma pena que a conclusão da crítica seja lembrando que a obra de Aly Muritiba não chegou nem na lista dos pré-indicados.