Depois de Ser Cinza
Entre três amores
Por Pedro Sales
No início dos anos 2000, o sociólogo Zygmunt Bauman cunhou o termo “amores líquidos”. Desde então, a acepção, que diz respeito a relacionamentos breves e com falta de profundidade e responsabilidade emocional, tornou-se resumo de toda uma geração. A conceituação inicial do texto pode parecer despropositada à primeira vista, no entanto, os relacionamentos de “Depois de Ser Cinza” são plenamente relacionáveis com o conceito do pensador polonês. O diretor Eduardo Wannmacher organiza essa história de encontros e desencontros com um roteiro intrincado, assinado por Leo Garcia. A não linearidade e as constantes digressões temporais, que alternam os interesses amorosos do protagonista, funcionam para a construção de um peso dramático na obra, na medida em que esse labirinto vai se desenovelando a ponto de o espectador finalmente ter a visão total da história ao fim da rodagem e entender as motivações dos personagens.
Raul (João Campos) é um antropólogo que está em viagem na Croácia. Lá, o pesquisador se encontra com Isabel (Elisa Volpatto). Ele deseja ir para Dubrovnik, ela, qualquer lugar longe de Zagreb, cidade onde estão. A partir disso, o filme se encaminha para um road movie em que ambos os personagens escondem as razões de suas viagens, os passados e desejos. Quando Isabel faz a incômoda colocação: “Espero que não tenha machucado ninguém”, vem à tona a relação de Raul com sua amiga Suzy (Branca Messina) e com a psicóloga Manuela (Silvia Lourenço). Constrói-se então a teia de relacionamentos desse trio de protagonistas, as quais, apesar de bem diferentes, de alguma forma se envolveram com o antropólogo. Além disso, em algum nível, todos esses personagens são solitários e lidam com frustrações latentes. A sequência inicial evidencia isso. O diálogo entre Isabel e Raul é passivo-agressivo. Sequer se apresentam ou perguntam de onde são, algo muito comum ao se encontrar com outro brasileiro fora do país. Nessa interação crua e obra do acaso, ela só quer um cigarro e ouvir a língua materna, e ele só quer ler naquele “fim de mundo”.
Mesmo com a centralidade de Raul na trama, “Depois de Ser Cinza” possui seus melhores momentos quando tangencia seu protagonista, relegando-o a secundário na história das três mulheres. Ao longo do filme, o antropólogo parece uma versão mais melancólica e ansiosa de Paulo, personagem de “Todas as Mulheres do Mundo” – a série da Globoplay, e não o filme de Domingos Oliveira protagonizado por Paulo José. Ele concentra essa figura do “esquerdomacho”, que por si só é desinteressante, aliado aos dramas burgueses da academia confessos no divã. A complexidade dramática, por outro lado, é mais tangível com as personagens femininas. Suzy possui um dilema quanto a vida acadêmica. Mesmo com a oportunidade de uma bolsa, ela lida com a sombra do pai, que foi um grande antropólogo. Paralelamente a isso, as festas, as drogas e a amizade-romance com Raul são outros fatores de interesse. A atriz Branca Messina efetivamente transmite essa dinâmica entre espírito livre e pesquisadora. Manuela teve uma separação dramática e sua incapacidade em se aprofundar nos relacionamentos amorosos adquire um novo capítulo com o paciente Raul. Por fim, Isabel é a mais complexa das três, dada a presença enigmática de Volpatto e o pouco que se revela da personagem, com exceção da vocação esquecida para arte.
Para transitar entre o tempo, presente, passado e memórias, a obra exige, naturalmente, um exímio trabalho de montagem. Aqui, isso acontece com bastante organicidade. O montador Bruno Carboni, inclusive, utiliza transições e match-cuts para “costurar” a narrativa das três personagens. A fluidez em que isso se dá também contribui para uma progressão dramática do filme, a qual consegue prender o espectador, de fato, e fazê-lo ansiar pelos desdobramentos da história e dos segredos que os personagens escondem. A proximidade evocada pela fotografia, que valoriza sobretudo os closes e planos médios também atua direciona a narrativa nos aspectos emocionais do quarteto, tendo suas imagens mais expressivas quando explora o isolamento desses personagens. Apesar disso, o trabalho de câmera soa bastante inconstante, com altos e baixos. Nas internas, os diálogos são filmados em uma decupagem protocolar e básica, presa no plano e contraplano. Por outro lado, na Croácia, a direção de fotografia explora mais ângulos, valoriza a geografia local com planos gerais e mergulha literalmente nos personagens.
“Depois de Ser Cinza” é um drama sobre quatro pessoas que experienciam um pouco da alienação e solidão, sentimentos cada vez mais visíveis na atualidade. As idas e vindas dos relacionamentos contemporâneos evocam certa liquidez e efemeridade, parece que são fadados ao fim, não por escolha própria, mas às vezes pela intervenção pelo destino. Nesse sentido, o diretor afirma que é “um filme sobre os movimentos que fazemos ao longo da vida”. O quarteto de atores consegue trazer as emoções à tela e essa noção de deslocamento – físico e emocional -, com destaque ao trio de atrizes, que protagonizam suas próprias histórias, ou capítulos. Outro fator marcante do longa é a escolha pela não linearidade no roteiro. Mesmo que os fatos se desdobrem de maneira não cronológica, a jornada emocional dos personagens, por sua vez, está em constante progressão, o que possibilita ao espectador entender como um isqueiro mudou de dono, a motivação da viagem e, mais importante, como Raul esteve entre três amores.