Curtas Jornadas Noite Adentro
O samba tem feitiço, o samba tem magia
Por Giulia Dela Pace
Mostra Internacional de Cinema de São Paulo 2021
“Oh, não
Não, ninguém faz samba só porque prefere
Força nenhuma no mundo interfere
Sobre o poder da criação”
(João Nogueira)
O samba paulista e o carioca, apesar de compartilharem do mesmo estilo musical e origens de matriz africana das periferias desses estados, são coisas diferentes. As primeiras manifestações do samba em São Paulo vieram do interior do estado no início do século XX. Assim, até meados do século o samba carioca e o paulista tinham características distintas mais marcantes, especialmente pelo samba de bumbo paulista, enquanto no Rio de Janeiro as transformações do samba foram muito mais “urbanas”. Assim, Thiago B. Mendonça – diretor do longa – reflete essa noção e energia em “Curtas Jornadas Noite Adentro” com toda construção de conceitos e elementos respeitosos que homenageiam a velha guarda do samba paulista e todas as características que a compõe.
Esse longa de tom documental, apesar do baixo orçamento, não deixa nada a desejar, talvez aos puristas da imagem. Mas, é justamente o fator da produção low budget que colabora com a ideia de resistência vinculada ao imagético do cinema nacional de baixo orçamento da era ditatorial. Uma imagem digital com ruído e texturas de “baixa qualidade”, que até podem simular o granulado da película, mas que também está carregada de uma atualidade que nunca se desvinculou do passado. E Thiago fez isso através do samba; das camadas sociais e através dos preconceitos com a cor e com o violão, um ambiente onde os personagens se libertam de seus cotidianos cansativos na música noturna aconchegante e delatora da realidade.
Daí certas questões sociais e raciais que perduram desde a ditadura, quando a música – em especial – era um dos principais alvos de censura administrativa e de abordagens policiais agressivas. Especialmente o samba, tendo em vista que era um estilo musical considerado, pela burguesia e alto escalão do governo, como “coisa de vagabundo”. E o cinema, apesar da forte ligação com censura e temas sociais, nunca se aprofundou ou abordou muito o samba, mas entre os poucos e grandes exemplos que temos, é possível citar: “Rio: Zona Norte” – de Nelson Pereira dos Santos – e “Eles Não Usam Black-Tie” – de Leon Hirszman. Este último, que sem o samba paulista suave como trilha sonora não seria uma obra tão completa como é…”Ai! Se me faltar o samba não sei o que será. Sem a cadência do samba não posso ficar”. Então, em “Curtas Jornadas Noite Adentro” acompanhamos certos planos reflexivos e cenas de pura alegria caótica que a câmera acompanha na vida dos boêmios, como na obra de Nelson Pereira, que são, também, parte da classe trabalhadora à margem da sociedade. Aqueles que não usam os “black e tais”, muitas vezes uma classe trabalhadora jovem subempregada e majoritariamente negra.
O ritmo cadenciado do filme, com algumas paradinhas de respiro que chegam arrepiar, é guiado por jornadas de dia e de noite que sempre terminam num bar ou começam num amanhecer tranquilo no morro com dedilhar de alguns acordes. Em certos momentos, a montagem contribui para fazer ecoar as letras e a batucada ao fundo mesmo passado certo tempo após a cena ter sido encerrada. Como se mesmo que noite terminasse e o samba ali também, o espectador conseguisse entrar numa parte sensível dos personagens que não necessita exposição durante o dia dos sambistas em seus “trampos”, pois o tempo de cada cena e montagem colabora de forma preciosa para esse efeito catártico.
Próximo ao final do filme, um dos sambistas principais se encontra com seu pai, como um encontro com outra geração do samba em busca do resgate de certa “ingenuidade” ou “pureza” do samba. Talvez, um dos momentos mais bonitos e contemplativos do longa, pois carrega uma forte bagagem emotiva do diretor com o próprio samba e aquelas “esperanças perdidas”.
“Curtas Jornadas Noite Adentro” é um filme nacional de respeito, pois sendo uma declaração de amor ao samba, é também uma carta aberta sobre a realidade da arte como expressão, mas sem grandes poderes no enfrentamento da realidade social direta quando os artistas se encontram em uma posição extremamente desfavorecida, tal como tantos outros artistas no Brasil. Assim, os personagens sabem viver a ternura do cotidiano e a arte da melhor forma possível, quase alienados à uma marginalização opressiva. “Curtas Jornadas Noite Adentro” aconchega e aquece como um samba cantado em numa roda alegre ao mesmo tempo que espanca com a dura realidade daquilo que se dança e canta: Inês é morta.