Sujeito e sociedade
Por Michel Araujo
Durante a Festa do Cinema Italiano 2018
O tema da moral é deveras complicado de trabalhar, especialmente em tempos de polarizações políticas, e filmes de certa forma ingênuos, porém de boa intenção, como “A Vida em Família” (2017) – que integrou a curadoria do 8 1/2 Festa do Cinema Italiano – trazem à luz as questões de crime e castigo, dever moral e redenção, assim como o afrontamento entre o coletivo e o individual. O diretor Edoardo Winspeare parece ter tomado gosto por trabalhar incisivamente nas temáticas de benevolência e positividade, se levarmos em consideração o filme anterior de sua carreira, “In grazia di Dio” (2014), o qual trata de uma família lidando com as possibilidades de se recuperar de uma crise financeira.
Tendo sido o indicado para o prêmio Orizzonti (premiação paralela ao leão do ouro do Festival de Veneza) para as categorias de melhor ator, melhor atriz, melhor diretor, melhor roteiro, melhor filme e o prêmio especial do júri, o longa conta a história de Fillipo Pisanelli (Gustavo Caputo), frustrado prefeito governante da pequena cidade de Disperata, ao sul da Itália. Fillipo não possui mais gosto por seu cargo político, entretanto, nutre uma forte paixão pela poesia e literatura, paixão essa que será o fio condutor de sua amizade com Pati (Claudio Giangreco), um ladrão de galinhas que sonhava que ele e seu irmão se tornassem chefes da Máfia de Capo di Leuca. A mudança de perspectiva vem para ambos os lados no encontro através da arte literária, tanto para Fillipo, desacreditado em seu trabalho, quanto para Pati e seu irmão, desacreditados na bondade da vida.
Ao início do filme, planos que se estendem e prolongam com auxílio tanto do silêncio quanto da composição de imagens paisagísticas pacatas nos auxiliam a entrar no mundo interior do protagonista, entediado, desacreditado e insatisfeito com a vida na cidade pequena. O uso da câmera e de primeiros planos postulam a subjetividade do personagem principal. Apesar de ser uma narrativa sobre a comunidade e a família (vide o título da obra), a perspectiva pessoal, interior e individual não deixa de reger a obra, o que pode ou não ser um deslize no direcionamento ideológico. Algo que é discutido desde os anos 20 com a ascensão do construtivismo eisensteiniano é o papel do povo, da polis, e não do indivíduo na narrativa, visto que a individualização das causas sociais é uma concepção demasiada errada quanto às verdadeiras formas de subverter as estruturas sociais.
Tal reflexão leva, portanto à conclusão de que a narrativa não se trata de uma história sobre a sociedade e a vida, mas sobre o “um único homem”. O que não deixa de ser louvável, as mudanças internas e individuais são também essenciais para remendar as rachaduras na convivência em comunidade. A redenção pessoal, somada a crítica interna permite também que um determinado estado social não se enrijeça e congele no tempo. Dialeticamente o indivíduo autocrítico impede a perpetuação de suas próprias imperfeições e também as de outrem.
Para além do julgamento pelo regime ético (que resulta nas anteriormente discutidas problematizações da narrativa), esteticamente o filme possui uma atmosfera certamente aprazível. A fotografia naturalista, porém bem trabalhada, com um característico aumento de contraste que evidencia texturas, sombras e superfície com clareza é um reforço bem interessante considerando o uso recorrente de primeiros planos, os quais adquirem mais contorno e detalhe, portanto mais vida. O trabalho de cor com foco no espectro de cores quentes auxilia ainda mais essa naturalidade e vivacidade com o calor emergindo da tela. Aspectos estéticos todos que contribuem (somados aos planos contemplativos paisagísticos) para a ambientação do que se imagina ser uma pequena cidade rural na região sul italiana.
O filme traz sinceridade e vida, num formato bem estabelecido nos parâmetros de “filme que aquece o coração”. Certamente não é dos mais incisivos ou concretamente críticos, é necessário um certo esforço do público para extrair uma leitura crítica fora do senso comum. A beleza de “A Vida em Família” (2017) reside na sua experiência prazerosa, leve e enobrecedora, apesar do idealismo ingênuo do texto do filme. Winspeare possui certamente o talento e sensibilidade para transmitir uma experiência genuinamente cinematográfica ao público. Fosse esse talento utilizado com mais ousadia, não restaria dúvida de que o diretor poderia facilmente nos presentear com uma incomparável obra-prima. Por ora, podemos apenas imaginar o potencial de sua próxima empreitada.