O homem de ferro
Por Fabricio Duque
A grande maestria de um filme é seu poder de surpreender o público. De transcender a padronizada normalidade narrativa (já conhecida) e criar a imersão em um território em que saímos completamente de nossas zonas de conforto. “Vice” é muito mais que uma obra americana sobre um dos momentos biográficos mais polêmicos e definidores da própria História americana. E, também, muito mais que um filme de ator, protagonizado sempre com entrega total por Christian Bale, que não poupa esforços físicos para se transmutar em seus personagens.
Neste caso, Bale encarna a atitude de “homem de ferro” republicano de Dick Cheney, o vice-presidente mais famoso dos Estados Unidos, que com manipulação e articulação política conseguiu concretizar todas suas propostas, “ajudado” pela vulnerável figura de George W. Bush. Dick, que pode ser considerado o primeiro-ministro britânico Winston Churchill, declarou guerra ao Iraque, caçou Osama Bin Laden e “acabou” com sua ditadura, após os atentados de 11 de Setembro. Devolvendo o país ao próprio povo do país. Sim, é muito mais.
“Vice”, com a direção corajosa de Adam Mckay (de “A Grande Aposta”), deturpa e desconstrói sua própria estrutura cinematográfica ao inserir metalinguagem e interferências que quebram o formato. Assim, nós somos conduzidos a uma autoral experiência visual, em que o discurso se transforma em conceito, libertando rótulos e padrões. A atmosfera é de gênero híbrido. Tanto há ficção, reportagens jornalísticas e bastidores, passando por Mockumentary (um fake documentário com a realista recriação da fantasia). Em determinado momento, o filme “acaba” (com créditos finais inclusive), e em tantos outros o narrador conversa com a gente.
O longa-metragem é uma sucessão crítica de análises comportamentais. De um político que faz de tudo para obter fama e poder. E, ainda que pelas sombras, domina sua nação pela “obrigação” imponente e catártica do patriotismo. Suas razões estão desnudadas e expostas com a verdade das palavras em uma entrevista, que encontram “abrigo” na alienação de seu povo, mais interessado no novo “Velozes e Furiosos” que nas consequências dos atos políticos. É despertado no espectador um insight. O de que os americanos “produzem” suas Histórias com o único intuito de transformá-las em filmes. Será?
Na juventude, Dick Cheney (Christian Bale) se aproximou do Partido Republicano ao ver na política uma grande oportunidade de ascender de vida. Ao lado de sua mulher (a atriz Amy Adams). Para tanto, se aproxima de Donald Rumsfeld (Steve Carell) e logo se torna seu assessor direto. Com a renúncia do ex-presidente Richard Nixon, os poucos republicanos que não estavam associados ao governo ganham imediata importância e, com isso, tanto Cheney quanto Rumsfeld retornam à esfera de poder do partido. Décadas depois, com a decisão de George W. Bush (Sam Rockwell) em se lançar candidato à presidência, Cheney é cortejado para assumir o posto de vice-presidente. Ele aceita, mas com uma condição: que tenha amplos poderes dentro do governo, caso a chapa formada seja eleita.
Mas o ponto mais importante e que em hipótese alguma deveríamos deixar de mencionar é a interpretação. Pois é, precisamos falar sobre o britânico Christian Bale. Desde sua aparição mirim em “O Império do Sol”, de Steven Spielberg, um ano antes de sua estreia em “Anastasia: The Mystery of Anna”, passando por “O Psicopata Americano” e “O Operário”, o ator comprova um controle espontâneo e absoluto, vivenciando plenamente seu papel e não pretendendo ser.
Nas palavras do cineasta soviético Sergei Eisenstein, em “O Sentido do Filme”, a encenação é definida como uma “autenticidade da esfera da técnica interior do ator”. “É o estado, a sensação, a experiência sentida, em consequência direta em grau máximo de expressividade”. Sim, um ator deve naturalizar seu personagem a ponto dissociá-lo da própria construção. Aqui, Bale não simplesmente busca a criação e sim a personificação. Não há a necessidade de reconstituí-la, mas dominá-la com a verdade. Com a certeza. Como uma possessão. Nunca uma cópia. É a essência do método. De recriar o mais puro processo da vida. Neste estágio não há espaço para vaidade e ou para os limites. Tudo é permitido e atinge a incondicional magnitude do próprio existir.
“Vice” consegue conjugar técnica, cotidiano, política, crítica, emoção, moralidade e ética. Nós, o público, somos assaltados por uma realidade escolhida. De cenas, fatos e instantes que nos indicam o que sentir. O que pensar. Somos ovelhas em espera. De acasos-lobby. De artimanhas políticas que apenas prezam por sucessos em outras empreitadas políticas. O povo? Um mero espectador. Assim como nós.