Curta Paranagua 2024

Crítica: Uma Espécie de Família

Desespero kafkiano em solo argentino

Por Bruno Mendes


Vencedor do prêmio de melhor roteiro do festival de San Sebastian e ganhador do prêmio de melhor filme do Festival Internacional de Chicago, o longa Uma espécie de Família (dirigido por Diego Lerman) provoca impactante imersão no espectador. O filme traz uma sensação amarga, tediosa, de verdadeiro mal-estar graças ao modus operandi cinematográfico competente e honesto. Se o mundo ao redor não é belo, se as relações pessoais em razão da ausência de vínculo e das discrepâncias sociais não derramam uma gota de empatia, não há motivos para “positividades”.

A aura pesada de Uma espécie de Família é bem traçada graças à fotografia que não economiza em tons opacos nos mais distintos instantes e na combinação de cenas que elenca o hiato entre os partícipes do drama. A história já aponta um tema delicado: a adoção. Malena (Bárbaria Lennie) é uma médica com boa condição social que decide adotar um bebê de forma ilegal, em Misiones, fronteira com o Brasil. Ao receber o aviso do nascimento, viaja para buscá-lo, contudo, passa a ser chantageada pelo avô biológico do recém-nascido, que pede 10 mil dólares.

Até onde ir para levar o bebê para casa e constituir a família dos sonhos? Como lidar com as próprias “questões éticas” e “morais” para seguir em frente com o plano inicial? A mencionada sensação amarga provocada por Uma espécie de Família emerge justamente da mescla entre a surpresa, angústia e decepção da protagonista ao ter que encarar desafios até então impensáveis.

Tais percalços confrontam não apenas a identidade moral da médica, mas a sua própria persona, como participante de classe social cuja distinta da mãe biológica e da maioria das pessoas que habitam aquela localidade até certo ponto inóspita. Nesse sentido o filme não deixa de colocar a lente com sutileza e propriedade nos conflitos de classes e ruídos do convívio, justificados pela parca comunicação entre dois mundos distintos. As diferenças sociais têm sua vez.

A Argentina neste exemplar não tem o filtro europeizado daquelas obras majoritariamente ambientadas em Buenos Aires, aqui vemos o interior empoeirado, escuro, carente de infraestrutura e mais alinhado ao espaço físico representado em obras como Central do Brasil e Diários de Motocicleta.

Do mesmo modo que personagens “urbanos” sentem-se perdidos em certos roadie movies, Malena considera-se intimamente presa ao círculo de acontecimentos daquele microcosmo. E o espaço físico tem forte importância nos desdobramentos dramáticos. Pontualíssimo é o registro da ocasião em que ela adormece dentro do carro e um personagem quebra o vidro para acordá-la, motivado por preocupação. Será aquele o veículo (e objeto pessoal, logo, familiar) o único elemento que a faz sentir-se mais segura e conectada com partes do “próprio mundo”?

O filme é sobre particularidades, sobre o desafio de limites éticos para se obter uma recompensa no fim. Malena não é uma má pessoa, mas por decidir adotar utilizando métodos ilegais abraça a “não justiça” e passa a fazer parte do “submundo” suscetível a subornos e desvios legais de distintas espécies.

O roteiro escrito pelo próprio diretor Diego Lerman e Maria Meira é eficaz ao expor com equilíbrios e em doses certeiras o embarque da protagonista a essa jornada exaustiva e imprevisível e os planos fechados no rosto ilustram com exatidão a coleção de incertezas e sufoco que, repito: são passadas ao espectador em níveis intensos. Não é fácil assistir a Uma espécie de família.

Em quase todas as sequências da obra Malena se vê imersa em uma redoma kafkiana. As escolhas causam os problemas, a consciência e a ética pessoal não são suficientes para livrá-la destes, afinal foi a opção pelas fugas da que em ponto de vista simplista poderiam agilizar o processo de adoção, que de certo modo a colocaram na situação.

Temos um filme de trama simples, mas com personagens fortes. Um filme sobre as consequências dolorosas de uma atitude. É sobre pessoas, sobre expectativas, frustrações e o vácuo nas relações humanas. De todo modo a obra não deixa de ser sobre o chão batido de uma Argentina pobre, desigual e, sobre certa perspectiva, distante do universo das leis.

O público ganha com a rica espinha dorsal da obra e por causa do conjunto de méritos passará maus momentos na sala escura.

4 Nota do Crítico 5 1

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