A Relevância da Intelectualidade
Por Fabricio Duque
Uma das características mais infláveis do gênero documentário é sua unicidade em contar existências de personagens reais integrantes do mundo em que vivemos, enaltecendo a premissa de que todas as histórias são suficientemente importantes e essencialmente válidas para despertarem fascínio e atenção. Sim, todo e qualquer ser humano possui em sua trajetória momentos marcantes que devem ser relembrados, compartilhados e perpetuados. Estas biografias são traduzidas de variadas formas narrativas, mas sempre com o viés intimista ideológico, como é o caso do filme em questão aqui, “Tudo é Irrelevante”, que conta a vida e obra do “provocador”, “nacionalista”, advogado, sociólogo, cientista político, escritor, carioca e, acima de tudo, um intelectual, Helio Jaguaribe Gomes de Mattos, que em 23 de abril de 1923 completou 94 anos.
O documentário “homenagem” é dirigido por sua filha Izabel Jaguaribe (de “Paulinho da Viola”) e seu genro Ernesto Baldan. Os dois cineastas já realizam o filme “Elza” sobre a cantora Elza Soares. Izabel, sócia da Conspiração Filmes, imprime em “Tudo é Irrelevante”, que participou da Festival É Tudo Verdade 2017, um tom, logicamente, mais afetivo, mitigando conflitos com seu pai. Aqui, sua intimidade retratada ganha um aspecto familiar e mais amigo, em que o homenageado é constantemente enaltecido e aplaudido em “rasgação de seda” as suas idiossincrasias, éticas, ensinamentos, questionamentos, elucubrações e até mesmo a sua “falta de humildade”. Isto faz com que a narrativa comporte-se mais caseira, mais amadora e mais irregular, como um passeio por um álbum-painel.
O filme é conduzido como uma aula didática pelas crenças verborrágicas (o contexto-conceito principal do “ensinamento racionalista jesuíta”) de Helio Jaguaribe do ateísmo (“nada que precede o nascimento e nada que precede sua morte”), intelectualidade, política, formigas, cosmos “consequencialista” (“O Universo é um sistema de casualidades mecânicas destituída de qualquer finalidade e de qualquer sentido. Ele vai ocorrendo”) acontecimentos históricos do Brasil e do Mundo (Getúlio Vargas – “o líder populista” que tem seu suicídio romanceado; Golpe de 64; o “desenvolvimentismo” de Jucelino Kubitschek; o “período excelente” de Kennedy nos Estados Unidos), tentando definir se sua “vida é insignificante ou se é significativa” por uma estrutura visual de animadas colagens temporais. “Tudo é irrelevante em última análise”, diz.
“Tudo é Irrelevante” é fantasmagoricamente imagético (por espectros em imagens sobrepostas) e sonoro, com narração da atriz Fernanda Montenegro (com inserções da peça “Viver em Tempos Mortos” sobre Simone de Beauvoir – “Mesmo que você viva o nada, porque nada é uma coisa imensa. O nada é tão apavorante quanto o tudo”), que também participa como depoente na “filosofia com exposição nacional”, dividindo a fala com Fernando Henrique Cardoso (“Intelectual tem a preocupação com a verdade, com a autoria. Político é outra ética”), Celso Furtado, Zuenir Ventura e tantos outros. “A virtude é a modéstia. Existir é absurdo. Sofrer é absoluto”, diz-se com “racionalismo científico”.
Helio Jaguaribe, de mãe portuguesa e pai cearense e militar (“embora profundamente pacífico”) busca a “cosmopolita, marxista, lúdica, sensual e de poesia fiel” “transcendência” natural (a hora “que o monstro criativo vem solto e toca a humanidade para frente”), e passa a sensação ao espectador de que é forte, arrogante, altivo, convencido, contestador, imodesto, orgulhoso, presunçoso, soberbo, insolente, petulante, presumido, pretensioso, ambicioso, intolerante e cúmplice em suas convicções, estas que sempre precisam da total concordância do próximo. Esta percepção assemelha-se a outros documentários unilaterais, como “O Jardim das Aflições”, de Josias Teófilo. “Todo homem é um animal transcendente”, diz com “cérebro cartesiano com uma alma romântica“
Entre poemas de William Shakespeare, teorias psicanalíticas de Sigmund Freud, Ortega, a sensibilidade da música clássica (que experimenta narrativamente uma cena estendida de tela preta sensorial em que só nosso sentido auditivo é estimulado – depois o silêncio só com imagens), sonetos amorosos, um enaltecimento respeitoso à família, “extremada disciplina” (“Criança sadia é extremamente gulosa”, “O apetite é a primeira e a última coisa que o homem perde”), vinhos, deuses e suas “condutas vis”, humanas versus remotas”, o “cinismo da Grécia Antiga”, o que o documentário almeja é humanizar o “enciclopedista rastro vitalício” Hélio, que gosta da “abrangência do conhecimento” “da razão vital”, que acredita que o “intelectual tem papel importante na sociedade”, que foi editor do jornal Correio da Manhã, que foi professor da Universidade de Harvard (“quase um americano adotivo”), que abraça a ideia de que o “jornalismo disciplina a linguagem contra a angústia corrosiva e contra consumistas intransitivos”, auto-exilou-se a fim de se proteger da ditadura.
“O Homem é um projeto”, diz Helio Jaguaribe, um “nacionalista pró-Brasil” com “influência intelectual europeia”. “Tudo é Irrelevante” é relevante ao dar voz particular e única a seu homenageado e seus amigos depoentes. Mas também é específico em sua forma transmitida à tela cinematográfica, soando irregular pelo demasiado envolvimento no campo pessoal. A diretora esquece-se de distanciar o pai da figura pública (que nos anos setenta foi um ferrenho defensor da legalização das drogas – retro-alimentada por FHC), e realiza um documento particular de e para sua família.