Férias Terapêuticas
Por Fabricio Duque
Durante o Festival do Rio 2018
Cada vez os espectadores dão-se conta de que quanto mais simples for a narrativa de um filme, melhor é seu resultado final. O menos é sempre mais. E quando se diz simples não significa ser simplista. Traduzir o básico do olhar é uma arte para poucos.
E “Sueño Florianópolis” consegue com primor em um controle absoluto da direção de Ana Katz (também uma das atrizes) e da preparação de seus atores. O longa-metragem é uma crônica latina. De argentinos que se transmutam em brasileiros pela possibilidade de viver novas experiências que modificam manias existenciais em liberdades vivenciadas e aceitáveis e melhores.
A trama constrói-se por uma naturalidade humanizada, orgânica e sem maniqueísmos definidores. Cada um possui um tempo único e uma forma de sobreviver, tudo pelo espirituoso humor gaiato nosso de cada dia (uma união do defensivo, desconfiado e passivo agressivo dos hermanos com o jeitinho brasileiro de sorrir mesmo na lama).
É um filme essencialmente antropólogo, pela analise dos comportamentos sociais, que são desnudados e desmascarados. Emoções contidas viram desejos. Aceitações hipócritas em realistas terapias cognitivas de choque. O responsável por todo esse desnorteamento é a perda do limite, dos parâmetros entre certo e ou errado. Sim, nada é tão maquinário e binário.
“Sueño Florianópolis” acontece exatamente aí: neste meio termo de sutilezas e na expansão de soluções de ser o que precisa ser. Há um charme pateta e caseiro com a maestria de seu passeia técnico. Tudo pelo respeito ao equilíbrio do tempo, que espera o momento certeiro de aprofundar sentimentos e sensações. Exatamente o que acontece em “Benzinho”, de Gustavo Pizzi. São semelhanças e afinidades de um cinema que capta o ser humano com ficção.
No verão de 1990 o casal, Lucrecia (Mercedes Morán) e Pedro (Gustavo Garzón), psicanalistas, tem 22 anos de casamento e estão prestes a se divorciar. Porém, antes de tomar essa decisão, eles resolvem viajar com seus dois filhos adolescentes (“autônomos e independentes”) de Buenos Aires para Florianópolis em um velho carro sem ar condicionado. E no destino, esbarram-se no casal, interpretado pelos atores Marco Ricca (um mulherengo, charmoso, com “mil talentos” e que “pinta o cabelo”) e Andrea Beltrão, que vivem de alugar casas. O motivo da viagem? Reconectar a família que “não explica, comenta”. Zerar a rotina. Com sexo no banheiro em um hotel decadente de estrada. Tudo para “aproveitar o câmbio bom”.
“Sueño Florianópolis” é um road movie de argentinos que viajam em férias ao Brasil, especialmente na praia de Florianópolis. A família almeja um resort, mas o que encontra é a desventura de uma comuna em uma simples casa hóspede alugada de “calor tropical”. Eles precisam “atravessar o rio” para viver a tranquilidade e a paz. “Esta Floripa é totalmente diferente da outra Floripa”, diz explicitando as frustrações. Sorte ou carma?
É o “não solidário” versus a acalorada recepção (e ajuda “esperta” – com segundas e terceiras intenções) do povo que “bebe cerveja todo dia”, que anda o dia todo de “sunga” e que muda com leveza a vida dos moradores portenhos (que antes se comportava com uma “simpatia” social quase hipócrita), vulneráveis, inocentes e ingenuamente arrogantes (que escondem dinheiro na capa de um long-play por medo de roubo e não “colaboram”).
O longa-metragem, que transmite um cotidiano naturalista-espontâneo, é uma grande picardia respeitosa de troca de culturas, como por exemplo, as dificuldades mutuas de entender a língua. “A vida é curta”, diz-se. E com esse ensinamento, todos permitem-se deixar pré-conceitos de lado e embarcar em oportunidades presentes que ganham. Depois do limbo, o paraíso e seu tempo suspenso e pausado. De sentir o tédio, o ócio destituído de pressão das tardes solitárias. E as danças divertidas em volta da árvore. E o bolo de aniversário de melancia.
Cada um adentra em um universo próprio do outro. “O que os olhos não veem, o coração não sente”, sentencia-se entre dramas, defesas, auto-proteções, falsos elogios, decisões, impulsos, invejas (da “grama mais verde do vizinho”), “Lobby”, “genética” que ajuda e a leitura de “Cai a Noite Tropical” (1988), de Manuel Puig, autor argentino que escreveu “O Beijo da Mulher Aranha”.
Sim, eles são idiossincraticamente felizes, sem medo de ratos e ou gambás e sem humor para brincadeiras. Aos poucos, ao experienciar “excursões inesquecíveis” de um banana boat e sambas-enredos, soltam-se mais e mais, libertando egoísmos e mimos para aproveitar o “mundo perdido”. É uma nostalgia real. Importada de forma imagética e sensorial ao nosso presente, principalmente pelos olhares, silêncios e hesitações que dizem tudo.
“Sueño Florianópolis” é um filme de comparação de épocas (“água fria, mas deliciosa”). E de intimidades compartilhadas. Confessadas com verdades quase adolescentes. Pais pseudo maduros (pseudo idealistas com seus “planos determinados” e conflitos por diálogos), que vivem separados e serão os “brasileiros no futuro”. “Na Argentina, ressaca também é ressaca”. Camisa Nirvana versus Ratos de Porão. Dissimula-se e se analisa por jargões psicanalíticos e “parâmetros diferentes para tratar os outros”.
É sobre os instantes, sobre o acaso que vai levando e mudando o rumo. Um GPS que reconfigura a rota. Mas não um discurso clichê de auto-ajuda. É a vida como ela é. Geracional. Que toma outros caminhos de ouvir a terapia, não convencional e mais popular à moda de uma mesa de bar, dos brasileiros (“Camarão que dorme na praia, a onda leva”).
A mensagem que fica é a de que “uns vem, outros vão”. É a lei natural da vida, que faz “o que quer com eles mesmo”). As substituições do ficar. De ser “bom de boas-vindas, mas não de despedidas”. A viagem mudou a vida de todos. Mas com a necessidade do retorno. Férias nunca é férias se for permanente. O filme é um típico e qualitativo samba de Partido Alto e sua “Fita Amarela”, música de Noel Rosa. Um filme irretocável que faz com que o espectador queira permanecer dentro dessas histórias e nunca desejar que essas férias terminem.