O Som Gélido da Arte
Por Fabricio Duque
O artista plástico russo Wassily Kandinsky disse certa vez que “toda forma, toda cor, significa um sentimento: não existe nada no mundo que não diga nada”. O pintor espanhol Pablo Picasso complementa esta ideia com a frase icônica: “Na arte, procurar não significa nada. O que importa é encontrar”. Sim, o resultado é o propósito pleno. Como então nós podemos imprimir um julgamento limitador se toda e qualquer criação é idiossincrática? Como podemos mensurar o que é ou não é arte? Como podemos analisar as subjetivas razões que levaram um ou outro artista escolher os próprios meios, caminhos, subterfúgios, escolhas, liberdades e utopias para tal realização?
O filósofo grego Aristóteles, aluno de Platão e professor de Alexandre, o Grande, disse que “o objetivo da arte não é representar a aparência exterior das coisas, mas o seu significado interior”. A arte é uma “contemplação espiritual”, “a mais profunda exteriorização do ideal” e “polariza as esperanças da alma”. O artista vivencia plenamente uma terapêutica individualidade, uma explosão criativa. É ser honesto, verdadeiro, passional, impulsivo e despido de melindres, tabus e amarras. Quando algum ser humano tenta classificar qualquer arte, é porque não a compreendeu.
“Soundtrack” busca exatamente esta premissa para desenvolver sua trama intimista, sensível, pessoal e de contemplação existencialista, levantando a questão do porquê uma pessoa vai a uma estação polar para “tirar selfies” com uma trilha-sonora conjugada, sendo “criticada” pelos novos “amigos” cientistas (porém lógicos). Não é para entender, mas absorver suas nuances, como os astronautas que acreditam desbravar outras galáxias.
O filme, dos diretores Bernardo Dutra e Manitou Felipe, do coletivo 300ml, ambientado em um estúdio em Jacarepaguá, no Rio de Janeiro, e majoritariamente falado em inglês, que estimula o conflito entre ciência, solidão, arte e amizade, é, acima de tudo, uma reflexão por mostrar que quando seres humanos isolam-se em geografias monocromáticas (para se “desconectar” do mundo – característica esperada-típica a fim de entrar completamente na própria experiência – vide por exemplo os navegadores solitários), por propósito em nevascas, atritos ideológicos são gerados.
“Soundtrack” é também sobre impulsos, principalmente a do artista em experimentar sensações como a cegueira, como a o jazz “deficiente visual” de Moondog, pseudônimo do músico cosmologista Louis Thomas Hardin, que conheceu Charlie Parker. Aqui, a jornada é fisicamente metaforizada, pelas passageiras cabines do cargueiro-navio que causam enjoos, vômitos, turbulências, até seu destino final.
Decidido a realizar uma exposição de arte, o fotógrafo Cris (o ator Selton Mello), solteiro e sem filhos, viaja até uma estação de pesquisa polar para se isolar e tirar selfies que capturem as sensações causadas por uma série de músicas pré-selecionadas. No local, ele conhece o botânico brasileiro Cao (Seu Jorge), o especialista britânico em aquecimento global Mark (Ralph Ineson, o personagem Dagmer Cleftjaw, da série “Game of Thrones”), o biólogo chinês Huang (Thomas Chaanhing) e o pesquisador dinamarquês Rafnar (Lukas Loughran). Os cinco precisam conviver juntos e descobrem diferentes perspectivas sobre a vida e arte.
“Soundtrack” abraça muito mais o conceito-contexto temático que necessariamente sua forma narrativa, esta que se apresenta mais afetada, mais superficial, mais anti-naturalista e mais romanceada, cujo conflito inóspito soa um tom acima da realidade dos diálogos, desestruturando o equilíbrio. O roteiro, fragmenta ambientações iniciais (dividi a posse territorial de “canecas”) e opta pela inferência emocional, conduzindo-se pelo “ateísmo” da “sombra” desenvolta e “inevitável” da trama.
Aos poucos, estes cinco, entre consequências da convivência, suas picardias, pilhérias, trotes, preocupações, silêncios, introspecções, lobby social, jogos de futebol, exercícios acadêmicos, confissões, exemplificações ao objetivo do projeto (“ver retratos ouvindo música”), carinhos adquiridos, respeitos cúmplices, “comidas estranhas”, momentos constrangedores, orgulhos explícitos, sustos de terror iminente por um “quebra-gelo” das fendas, sons potencializados , sonhos do “Tour de France”, os perigos concretistas (“nunca ir sem rádio e ao Sul”), a “diversão” da revista pornô, são imersos nas definições cotidianas da arte. É inevitável não referenciarmos à “Os Monstros”, do coletivo Alumbramento Filmes, nesta versão gélida Polo Norte. Eles perguntam e tentam entender o porquê do projeto, do que se trata, do que o novato faz.
“Soundtrack” é sobre pessoas que usam seus talentos, invenções e ideias ininteligíveis para “investir em um novo conceito” de um sustentável bem-comum, buscando os “créditos” na posterioridade. Este confronto, egocêntrico (de só acreditar que as próprias crenças são importantes) e hipócrita (olho no próprio financiamento), documenta possibilidades criativas, como o gato digital de estimação (uma forma tecnológica da bola Mr. Wilson, de “Náufrago”, de Robert Zemeckis).
“Não existe one aqui”, diz alguém com “raiva” e intolerância (extrapolando e ignorando a linha) por ter que trabalhar (em um projeto que dura noventa anos e que todos os dias realiza repetidamente o lançamento de um balão no mesmo horário “às cinco horas” por “800 pessoas no mundo”) em uma noite de natal (deixando mulher e filho em casa) enquanto observa com inveja a “liberdade escolhida” imediatista-criativa de Cris (que não se importa em ter o curso mudado de sua arte) e da visão sensível em construir uma árvore de natal de sobras do lixo tecnológico. “Ninguém se torna um artista, acontece”, diz.
O filme, que se utiliza de gatilhos comuns para conectar o ritmo narrativo, não foge de certas questões clichês com frases de efeito sobre o propósito da vida, de Deus que separou a “luz das trevas”, religião, microondas, a auto-estima do “fazer valer à pena”, da ingenuidade dos navegadores, da superação dos próprios limites, da Ayahuasca e dos “cogumelos de lata”. Tudo para culminar a “sensação única de se sentar no meio do nada” com “saudade”, ouvindo trechos de entrevistas da “felicidade” de Mr. Alfredo Hitchcock (que se “livra das emoções negativas e caminha olhando para frente”, expedições Apolo 8. Cada música altera a percepção sobre o olhar das coisas. “A montanha é diferente com outra trilha”. “Tudo muda o tempo todo”, diz-se com tédio da “época do ano triste”.
“Soundtrack” ambienta sua trilha-sonora pelo o cósmico sensorial, caminhando em uma interseção entre o erudito, o jazz improviso, o folk moderno, a influência contemporânea à moda do grupo islandês Sigur Rós e as raízes na música nativa. A experiência aos moldes de “127 Horas”, de Danny Boyle, cria lembranças e pelo trauma expande possibilidades criativas. A arte não faz sentido para quem não vê o sentido. Assim, entendemos o propósito e o “instinto” do explorador Robert Falcon Scott, que liderou suas últimas expedições a Antártida em 1912. “Somos nós que complicamos as coisas”, ensina-se.
O longa-metragem, primeiro filme ambientado na Islândia, passeia pela limite tênue do humor mais palatável, das ações mais infantis, do objetivo lúdico-passional, da “bobagem científica” e do contexto existencialista para eternizar a arte. A música eletrônica, o trote de iniciação em correr pelado, os fogos de artifício, a auto-preservação, e a morte como parte do processo de criação, tudo objetiva personificar a tradução exata e definitiva da arte. Sumir para aparecer.