Ousadia com recompensa
Por Filippo Pitanga
Durante o Festival Cine Ceará 2018
No início de 2018, durante a 21° Mostra de Cinema de Tiradentes, o filme “Lembro Mais dos Corvos” deixou uma marca muito profunda e saiu com o Prêmio Helena Ignez para Julia Katharine, que não só havia protagonizado como roteirizado o longa junto com seu diretor Gustavo Vinagre. Amigos de longa data e já tendo trabalhado juntos, havia ali uma relação de confiança entre eles para poder se explorar um documentário tão íntimo e pessoal, baseado em tom confessional na própria vida da atriz, que às vezes parecia atravessar um pouco o limite ético da ultra exposição ao mesmo tempo em que enganava de forma farsesca quem de fato estava no controle ali, se Gustavo ou a própria Julia — de modo a alcançar um exercício incrível de análise construtiva de representatividade e lugar de fala conjunto.
Eis que o documentário colombiano “Senhorita Maria, A Saia da Montanha” de Rubén Mendoza contém algumas similaridades com este projeto supracitado, com a diferença de se dar numa polaridade inversa. No filme acima, não precisei citar o fato de a protagonista e roteirista ser uma pessoa trans, pois ela exerce um poder tão fascinante no controle da atuação e roteiro que a verdade é que Julia é uma excelente profissional e ponto final. Porém, com a Senhorita Maria no título do filme de Mendoza, estamos falando sobre uma pessoa trans no mais alto nível de vulnerabilidade, que é uma posição externamente leiga de muitos de seus direitos, num vilarejo interiorano no alto das montanhas colombianas, de modo que vive ainda mais isolada e cercada por uma comunidade ignorante que a hostiliza e talvez só não a tenham assassinado, como em muitos casos similares estatisticamente falando, porque ela virou um ser quase mitológico para eles.
Para além da exotificação pelo ponto de vista da comunidade onde a protagonista vive, o filme tenta desviar das possibilidades de exotificá-la também através de alguns recursos, com mais ou menos sucesso… O fato é que a vida de Maria é fascinante e complicadíssima, sendo difícil não se debruçar demais e talvez despencar sobre o espelho d´água que se cria em seu reflexo. Uma vida dura e cruel às vezes, independente de julgamentos, e que forçaram a personagem da vida real a se isolar e ter poucas chances de desenvolvimento social, quase como uma “Nell” (filme muito lembrado pela personagem-título interpretada por Jodie Foster que não sabia se portar socialmente por ter vivido sozinha na selva desde sempre, como também Tarzan). Outra personagem a quem ela alude, ao menos no imaginário cinematográfico brasileiro, por suas ideias e interpretações únicas da vida e de Deus e até da Virgem Maria é “Estamira”, documentário de Marcos Prado, pois retratava uma personagem exótica com um pensamento totalmente à parte da sociedade. Ou seja, de fato Maria acaba sendo um prato cheio para despertar o interesse cinematográfico em assistí-la e em que alguém tivesse a capacidade de registrá-la para a telona – com a delicada responsabilidade de se respeitar eticamente a complexa vida vinculada a esta imagem, especialmente uma vez solta no mundo.
Aliás, por falar em Virgem Maria, a própria personagem não demonstra poder ter explorado muito a própria sexualidade em sua vida, talvez tendo inclusive de suprimí-la, independente da questão de gênero – como uma virgem imaculada – até porque a religião é um dos únicos elementos de ligação que ela possui com a sociedade exterior, interagindo com as pessoas unicamente para ter de ir à igreja da cidade. Uma coisa é Maria não se identificar com o corpo biologicamente tido como masculino e agir e se vestir de acordo com o gênero feminino, mas a sexualidade é algo à parte do gênero, e ela poderia até mesmo se identificar sexualmente com um interesse homoafetivo com outras mulheres…, ou até ser assexuada. Só que parece não ter havido chance em sua vida para que ela sequer pudesse se compreender melhor. E é importante dizer isso porque ainda estamos caminhando no tênue limiar da fronteira ética em se filmar esta pessoa como personagem de um documentário. O fato é que a sociedade onde ela vive é muito opressora e isolada para servir de parâmetro…
E o filme? Consentir em ser filmada demonstraria o equivalente a se ter compreensão real do que estivesse consentindo? É curioso porque a câmera se apaixona por ela, de modo a que cada vez mais Maria se abra de forma quase natural, às vezes dolorosa, perceptivelmente mais e mais à vontade conforme o filme segue, quase como se começasse a usar da câmera como uma sessão de terapia anônima, já que ninguém ali deveria querer ouvi-la muito bem antes disso. Nem a montagem parece adulterar a ordem do conhecimento dos fatos, como se realmente eles fossem apreendidos de acordo com que se desvelam (ganhando cada vez mais planos bem enquadrados de entrevistas frontais com ela de maneira confessional na frente de uma belíssima paisagem panorâmica das montanhas tocadas pelas nuvens onde ela vive).
Para além de se haver técnica profissional como documentarista para extrair verdades de uma personagem duplamente pária, tanto à parte do vilarejo pelas montanhas onde se esconde (no que se percebe nitidamente que não estivesse sempre disponível para o diretor e equipe do filme), quanto pelo não pertencimento a nada nem ninguém… às vezes nem a si mesma. Ela prefere a companhia dos animais a das pessoas. A cena em que corre com um bezerrinho recém-nascido, feito um cachorrinho, que ajudou a parir alguns dias antes, é tocante de forma genuína e catártica para o resto do filme. Resume bem que, quando o cinema captura algo puro de verdade, acontece alguma mágica que não se pode contabilizar ou prever, mesmo com todos os incômodos de percurso. Isto porque o experiente documentarista colombiano Rubén Mendoza pode até demonstrar precisão em alcançar a essência da personagem, mas também negligencia construir melhor o contexto do entorno que envolve aquela pessoa tão machucada por preconceitos sociais que são difíceis de explicar e de se conviver com isso…
Não que inexistam entrevistas com outras personagens do vilarejo, mas apenas uns poucos que possuem algum contato com pessoal ou de memória mais íntima com a história da protagonista, porém nenhuma das pessoas que realmente forma a enorme barreira que verdadeiramente é responsável por Maria ter de viver à parte de todos. Não que uma ou outra ofensa não seja captada de esguelha pela câmera, mas não é o foco e nem deveria ser, para não ser injusto com a retratada em foco nem condescendente com o outro lado… Contudo, poderia ter feito um trabalho de investigação e aprofundamento maior em descortinar a hipocrisia dos culpados cuja mentalidade poderia receber e muito a ajuda do cinema em criar novos imaginários positivos em desconstruir preconceitos. E lembrando que a Colômbia, especialmente naquela região montanhosa, não está no mesmo compasso de avanço de consciência de direitos LGBTQ que o Brasil ou o resto do mundo para que possamos cobrar no mesmo nível.
Não que isso modifique de alguma forma a experiência que seja espontânea para o espectador que recepciona a obra em sua primeira impressão irrevogável, entretanto, vale acrescentar sobre a experiência extrafílmica que, em debate posterior à exibição da obra, o diretor revelou o fato de que Maria jamais havia sequer assistido um filme na vida, e que este sobre si mesma foi o primeiro, da mesma forma que graças a ele foi a primeira vez que ela viajou para fora de sua cidade, de seu país, de avião e até viu o mar. Sem falar que a produção do filme auxiliou problemas jurídicos de Maria e até proporcionou que não apenas saísse de seu ninho e conhecesse novas pessoas, pelo que chegou, inclusive, a casar desde então, e ao mesmo tempo a virar uma celebridade na sua própria cidade. A figura mítica que antes todos queriam evitar… Ou seja, ainda há muito o que se debater sobre lugar de fala, especialmente de forma compartilhada…, mas inegavelmente o cinema é o caminho para grandes avanços de representatividade social.