Roma, um bairro aberto
Por Fabricio Duque
Há muito tempo um filme não causa tanta alvoroço no meio cinematográfico. Críticos que quase nunca escrevem, articularam linhas opinativas. E o público em peso comenta, divulga e propaga. Não somente por ter vencido o Festival de Veneza deste ano na categoria mais importante, a de melhor longa-metragem, e ou de estar indicado como Melhor Filme Estrangeiro no Globo de Ouro 2019, e ou tampouco pela facilidade marcante de estar no canal de Streaming Netflix, e por consequência gerar questionamentos “briguentos” sobre a dimensão das exibições das obras, como a pergunta: se deve ter importância por se apresentar diretamente na tela de uma televisão no conforto do lar de cada um?
Pois é, a “vítima” da vez é o novo “filho” de Alfonso Cuáron, “Roma”, que podemos então criar uma definição “roubando” do diretor Orson Welles, que disse que “O Outro Lado do Vento”, também em cartaz na Netflix, que inclusive ajudou a finalizar, era “uma nova categoria de filme”, talvez aproveitada das exatas palavras do ator Jean-Paul Belmondo sobre “Acossado”, de Jean-Luc Godard.
“Roma” é um trabalho único do realizador, que além de dirigir, fotografa, edita e produz. É o retorno à essência da criação. Filmado em preto-e-branco, sua narrativa ecoa o Realismo Italiano de Fellini e Rosselini, principalmente por seu “Roma, Cidade Aberta”, que traz um orgânico naturalismo, e faz com que o espectador infira a estrutura atmosférica dos cineastas filipinas Lav Diaz e Brillante Mendoza, pelo desenvolvimento do tempo-espaço. Só que aqui há algo mais. Uma estética detalhista que se conecta pela imagem.
É uma fábula modernista de uma família em estudo temporal dos anos setenta, em uma crítica não julgadora (que deixa à cargo do espectador) sobre as classes sociais entre donos e empregados, à moda de “Que Horas Ela Volta”, de Anna Muylaert, com a “A Criada”, de Sebastián Silva, e com “O Pântano”, de Lucrecia Martel, com “Casa Grande”, de Fellipe Gamarano Barbosa. E porque não, “Santiago”. O que se desnuda é uma intrínseca separação social, que absorve uma hipocrisia tão enraizada, quase inocentemente ingênua ao repetir desmandos, recriando estágios suavizados da ainda escravidão.
De um lado, o poder. Dou outro, uma refratária subserviência. O pedantismo aristocrático versus a necessidade do trabalho de servir. “Roma” adentra na intimidade dos dramas da família. Em tom superficial, porque tudo é pelo ponto de vista da empregada “quase de família”. Que viaja junto com os patrões, que cuida dos filhos teimosos-mimados dos outros com paciência, que entre uma ou outra roupa lavada, descobre que “gosta de estar morta”. Ela mora no serviço, acorda cedo.
“Roma” é um épico mexicano, nacionalidade de Cuarón (de “E Sua Mãe Também”, “Harry Potter e o Prisioneiro de Azkaban”). É a evolução de uma família, que acorda do transe e precisa sobreviver sem a figura paterna, sem as estantes e com a “merda” deixada, principalmente do cachorro. É também uma metáfora político-social com seus protestos, homens machistas, lugares decadentes e em fase terminal. E tudo pelo detalhamento imagética com o controle absoluto da direção, como a dança maquinaria da entrada do carro na garagem de casa. E ou a luta em um campo descoberto.
Cidade do México, 1970. A rotina de uma família de classe média, no turbulento Distrito Federal do México no início do governo de Luis Echeverría, é controlada de maneira silenciosa por uma mulher (a atriz estreante Yalitza Aparicio, em uma interpretação irretocável), que trabalha como babá e empregada doméstica. Durante um ano, diversos acontecimentos inesperados começam a afetar a vida de todos os moradores da casa, dando origem a uma série de mudanças, coletivas e pessoais. É sobre a história de Cleo, esta empregada que trabalha (colocando tudo nos eixos e permitindo que as engrenagens permaneçam sem atrasos).
E ou a liberdade bucólica de perder o tempo brincando na praia. Não há posicionamentos gratuitos, até porque este é uma obra inteiramente autoral, tanto que, além do espanhol, é falado em Mixteca (dialeto-língua otomanguana do México e se relacionam às línguas triques e cucaltecas, faladas por cerca de meio milhão de pessoas). É transgressor pela forma como se conduz. Pela intimidade engessada propositadamente e ou pelo realismo afastado de contemplar a rotina cotidiana de uma “pobre família rica”, que no fundo é igual a todo e qualquer indivíduo social. Independente de classes sociais. O título “Roma” é o bairro Colonia Roma, em que a trama se desenvolve, e até hoje existem mansões e palacetes de inspiração europeia.