O épico de um homem-deus
Por Fabricio Duque
Quando menos se espera, os verdadeiros cinéfilos de plantão (aqueles que não desistem nunca da sétima arte) são presenteados com uma exceção. Com uma obra que quebra todo e qualquer resquício de padronização comercial para assim despertar a essência da autoralidade. “Rei” é um desses exemplos. Um épico existencialista que realiza uma homenagem ao cineasta chileno Alejandro Jodorowsky (em “A Montanha Mágica”), por construir a narrativa pela ambiência alegórica de seus personagens e pela fotografia livre, liberta e nostálgica dos primeiros filmes realizados.
É um longa-metragem de colagens referenciais a fim de criar uma fábula sobre o genocídio dos povos indígenas. A lenda de uma história real metaforiza a trajetória de um francês, advogado do campo, que se embrenha em uma aventura a terras ainda não demarcadas pela República do Chile. O conto de fadas realista-fantástico cria um universo teatralizado de Samuel Beckett com a estética bucólico-amadora do português Miguel Gomes (em “Tabu” – pelo seu início – e em “Mil e Uma Noites” – pelo julgamento). Nós somos conduzidos do cativeiro ao apocalipse, passando pelo julgamento, febre e outros estágios definidos e auto-definitivos.
A trama quer a simplicidade com doses não homeopáticas de viagens transcendentais, psicodélicas e delirantes, em que verdade e imaginação são confundidas por mentes doentes e ou humanas, estas mais preocupadas com as próprias vitórias e poderes orgulhosos. “Rei” é acima de tudo uma experiência sensorial. De conceito comportamental, antropológico, político e social. É a ficção criada de exemplos reais que vivemos desde que o mundo é mundo e desde o “reino” de Adão.
Aqui, nossa protagonista embarca em sua própria loucura, compartilhando percepções, ajudas, crenças, ideologias e consequências de seus atos e suas escolhas. É também uma metáfora sobre a “invasão” estrangeira que incita locais contra o governo. Uma troca de ditadores. Apenas. Uns mais altivos, outros mais determinados. Mas é na fotografia que “Rei” reina, inova e impõe caminhos imagéticos com seus efeitos especiais manuais à moda de um David Lynch na nova temporada de “Twin Peaks” e de um Stanley Kubrick em “2001 – Uma Odisseia no Espaço”.
Mais é mais. Muito mais. É uma imersão artística, uma instalação visual. Um destemido encontro com o desconhecido. Não se espera nada. Não há pretensões e sim o querer único e absoluto de traduzir em tela as percepções introjetadas e ardentes. É um incêndio de ideias. Um brainstorming criativo. Uma possibilidade a todos apaixonados pela independência, autonomia e auto-suficiência das livres formas do criar.
Orélie-Antoine de Tounens (o ator Rodrigo Lisboa) foi um aventureiro francês corajoso, que decidiu viajar pelo continente sul-americano em 1860 e fundar sua própria monarquia. Com o aval dos índios do sul do Chile, criou o Reino da Araucania e da Patagônia, declarando-se rei do local. Mas o governo chileno decide tomar as devidas providências para impedir o reinado deste estrangeiro em suas terras. Baseado numa história real.
“Rei” desdobra-se pelo campo estético do olhar. Nós somos convidados a participar de uma apossada tradução de “Rei Lear”, de William Shakespeare, quando cria o paralelismo da loucura por personagens alegóricos com suas máscaras defensivas e com suas incongruências em expor seus verdadeiros “eu”s. É um artifício de suavização, assim como o cambojano “A Imagem que Falta”, de Rithy Pahn; “Onde Vivem os Monstros”, de Spike Jonze; “Sonhando Acordado”, de Michel Gondry. Referências não faltam e são muitas, mas nada é cópia, tampouco plágio, muito menos homenagem.
É uma abnegação da própria realidade. De re-configurar uma constituição de época pela singeleza artística. Seu americano diretor Niles Atallah, que produziu “A Casa Lobo”, dos diretores Cristóbal León e Joaquín Cociña, que segue a mesma linha fantasia, orgânica, animada e realista, corrobora até o fim sua inclinação lúdica de “trilhar” fora do comum, e assim realiza com ímpeto e passionalidade um Road Movie andante. De descobertas físicas, analógicas e ou psicotrópicas. “Sua sentença é seu exílio”, diz-se.
“Rei” é uma visita-transe de um excêntrico andarilho que não se importa em usar o acaso para chegar a um lugar que nem mesmo Antoine sabe. De seu momento atual a sua ancestralidade. De permissão às origens. De resgatar a naturalidade de uma vida antes da interferência do homem branco. É um pedido de desculpas de seu diretor. De certa culpa dos egoístas desbravadores que achavam que seus progressos eram superiores aos dos antigos moradores de uma virgem e exótica terra aos olhos do mundo dito civilizado. Se o inferno é o homem, “Rei” é sua redenção.