Investigação do feminino pelo passado
Por Francisco Carbone
Direto da Mostra de Cinema de Tiradentes 2018
“Rebento” integra a seleção competição da Mostra Aurora da Mostra de Cinema de Tiradentes 2018. Um bebê nasce numa casa modesta. A câmera captura mãe e filho do alto, e vai se afastando lentamente. O filme de André Morais se inicia de maneira impactante, e 10 minutos depois uma nova e ainda mais inacreditável cena transforma o nosso olhar sobre a protagonista de maneira definitiva. Maria. Ou Ana. Ou Clara. Eu. Ou Você. As flechas do filme são muito óbvias, e suas leituras não têm muito como ser complexificadas para além do que se vê se o longa deixa os espaços abertos por onde o debate entrar de maneira muito explícita. O caminho da protagonista é delineado a partir da atitude que ela toma nesse início e se desenrola com certo interesse a partir de então, sem no entanto avançar por sobre análises que possam enriquecer o material para além do apresentado. O diretor André Morais tem talento para a captação de imagens e a construção de planos, trabalha a imagem com cuidado e é dedicado a ela, mas o filme sofre de outros problemas que as opções estéticas não evidenciam, no que ocorre inclusive uma cacofonia.
O filme parte de um lugar de fábula, inserindo essa personagem sem nome (ou com vários) numa alegoria circular de caminhos, encontros e experiências novas e diferentes em cada um desses mesmos encontros. Um viuvo numa bicicleta, um almoço numa família só de mulheres, um grupo de crianças no qual se destaca um menino, sua mãe, seu pai: é complexo traçar um paralelo nos encontros, mas o filme parece beber numa cartilha de cinema ligeiramente experimental produzido nos anos 80, cuja linguagem não parece ter eco hoje. Esses encontros representam uma espécie de renascimento para uma mulher que presenciou o auge da vida e da morte há muito pouco tempo. A partir desses encontros deciframos não os segredos dessa mulher, porque os segredos do filme não são de foco direto assim, mas de ordem do abstrato – isso significa que mesmo elas são subjetivas. O filme investiga o lugar do feminino, como se essa protagonista passasse por diversas situações típicas do universo, por onde o filme desfila através dos 95 minutos.
Verdade seja dita, o diretor sabe enquadrar e recortar suas margens. De fotografia competente a cargo de João Carlos Beltrão, com uma utilização da luz sempre acertada e responsável por planos inspirados, André conseguiu captar a atriz Ingrid Trigueiro quase como uma figura fantasmagórica, como a vagar sem rumo em busca de acertar suas contas passadas. Portando uma melancia por quase todo o filme, a carregar como se fosse o próprio filho, a personagem encontra a própria mãe, vivida pela grande Zezita Matos, que não reconhece a própria filha; Alzheimer ou sinal de que algo mais está errado? Ao andar mais um pouco, encontra uma família de mulheres chefiada pela mesma Zezita em outro personagem, e um filme tem um plano sequência então de quase 10 minutos, que pode até não ser uma cena escrita de maneira brilhante, mas que definitivamente é uma excepcional realização e possivelmente a grande cena do filme (em duplo sentido inclusive), um almoço interminável que compreende uma leitura bem ampla de um grupo de mulheres que infelizmente não volta a aparecer.
As duas últimas passagens do filme são bem mais abrangentes e significativas, mas antes dela temos a passagem do viúvo na bicicleta que é o oposto disso. Uma possível paquera, um passeio de bicicleta bem filmada e só. Aí chega o grupo de crianças e simplesmente arremessa diversas mangas na personagem, que é surrada (!?!?) pelas frutas. Em conexão a essa cena, uma das graças se desgarra do grupo e tem um momento com a protagonista. Momento esse que podemos descrever minimamente como polêmico e desconcertante, algo como uma homenagem a Walter Hugo Khouri talvez mas que se encerra apontando um outro lado do feminino, que estava fora de quadro até então, e torna a situação ainda mais estranha. O outro momento envolve o encontro com o pai, um encontro que mostra finalmente a melancia sendo partida e ofertada ao personagem masculino, situação essa que se usarmos às metáforas possíveis só fica ainda mais bizarra. Mas o filme vai alem, quando André Morais dirige um filme sobre o universo feminino, que tenta ler esse universo de maneira onírica e envolve personagens em sua maioria femininos, mas o dedica a seu pai!
A cacofonia citada no primeiro parágrafo advém do próprio som do filme, mal construído e com uns problemas meio sérios, como a modulação errada, precisa ser urgentemente consertado antes de entrar em cartaz. Ainda que não tenha sido o único filme com esse problema, o filme apresenta outras questões dificeis referentes ao roteiro. Levando em consideração a mescla de ambições que joga o filme pro fabular mas também para uma linha de construção imagética realista, o filme acaba se equivocando ao apontar lados discrepantes e se perder um pouco mais nessa tentativa até honesta de reler tentativas de melodramas antigos, inclusive numa insistência ininterrupta de trilha sonora que joga o filme sempre num lado óbvio de dramaturgia. Tenho certeza que no entanto André parece preparado para realizar outros próximos filmes no qual terei profundo interesse, para saber a que lugares esse jovem cineasta paraibano ainda quer e pode chegar.