Um filme que nos faz enxergar melhor
Por Fabricio Duque
Marc Foster apresenta, em seu mais recente filme, “Por Trás dos Olhos”, até que ponto um ser-humano (o marido) pode ir para proteger (o lado dele) incondicionalmente seu amor pelo objeto “troféu” (a esposa). Aqui é a representação imagética de quem olha e quem é olhado. É a metáfora da submissão feminina versus o poder machista, este que “luta” para manter a padronização limitada dos impositivos maniqueísmos construídos por uma sociedade “cega”.
O diretor suíço (de “Mais Estranho Que a Ficção”, “Em Busca da Terra do Nunca”, “007: Quantum of Solace”, “O Caçador de Pipas”, “Guerra Mundial Z”) conduz o espectador pelo tom sensorial, atmosférico, psicodélico, de existencialismo cósmico-realista, de realidade, espectros, vultos, fantasia, sombras, formas e borrões. não há como não referenciar ao diretor Terrence Malick e seu “Árvore da Vida”.
“Por Trás dos Olhos” conta a história da personagem Gina (a atriz Blake Lively), que perdeu a visão ainda criança, em um acidente grave envolvendo seus pais. Acostumada à deficiência e às limitações, ela vive (vulnerável) com seu marido James (o ator Jason Clarke) na Tailândia, graças a uma promoção que ele recebeu.
Gina é completamente dependente do marido, em uma situação que agrada a ambos. Um dia, um médico decide testar uma nova cirurgia em Gina, que permitiria resgatar a visão de um dos olhos. Ao aceitar o procedimento, ela finalmente descobre um mundo novo, munida da vontade de viver várias experiências de que foi privada a vida inteira. Logo, a independência de Gina põe o casamento em risco e a previsível rotina de um casal sistemático. Agora não é mais frágil, acordando uma descomunal vontade de “gastar” a vida como ela é. Na sua plenitude e completude. Com suas qualidades degradês e por quê não também seus defeitos.
É a jornada do conhecimento. Do recomeçar a perceber cores. De redefinir o que conhecia, porque agora a máxima do “o que os olhos não veem, o coração não sente” não é mais aplicada. Gina parte em sua particular aventura de explorar tudo e todos, sem amarras, preconceitos, medos, culpas.
É um mundo que se expande, e ao longo do processo, ela começa a melhor enxergar (mais pelo lado de dentro – dos sentimentos não hipócritas) a essência, caráter e as consequências comportamentais do ser e do agir de cada um a sua volta. É como se acordasse de um transe, de um estado catatônico, de um resignado e consentido coma.
“Por Trás dos Olhos” mostra as facetas mais sórdidas dos próximos entes-indivíduos, traçando as fragilidades da personalidade, como a covardia do marido de não a proteger de um assédio e ou da desesperada e reprimida incapacidade dele de se solidarizar (e sentir na própria pele o que a esposa sentia) quando é vendado e amarrado para satisfazer um fetiche da nova Gina. E contempla como um olho mágico voyeur as infinitivas possibilidades de prazer. O sexo explícito dos Peep shows estimula e pode separar quereres de apenas curiosidades.
A narrativa dirige pelo ritmo cadenciado de um real suspense psicológico de iminentes perigos cotidianos, que potencializa ruídos e barulhos como forma supressória do sentido visual. Quando aumenta a percepção do olhar, outros estímulos instauram-se como brindes: a perspicácia, por exemplo. E quando suas “asinhas” estão prontas para voos maiores, alguém com medo, orgulho ferido e intimidado precisa a “recolocar” no lugar, como um “descanso” na fantasia permitida de um dia para recuperar as forças e retomar a realidade.
Mas seguindo regras já desenhadas do cinema americano e sua estrutura Hollywood de ser (apesar de influir na estética “quero ser Sundance”), “Por Trás dos Olhos” desperta reviravoltas irregulares, urgentes gatilhos comuns de finalização (como a carta deixada, a traição, a digressão resumo – corroborando o que o público já assistiu) e elipses videoclipes que completam o ciclo com o intuito de não deixar pontas soltas. Estes detalhes podem incomodar, contudo não prejudicam seu contexto e sua premissa conceitual.
“Por Trás dos Olhos” é um filme denso, tenso e que tem controle absoluto do roteiro. Com uma fotografia concretamente poética, de projeção-epifania, nós somos absorvidos do lado interno da córnea, captando sensações, sentidos e descobertas. De ressignificar o “diferente” do “All I See Is You” (título original – “Tudo que eu vejo é você”. É a viagem de uma mulher presenteada a descobrir que o verdadeiro inimigo não era sua deficiência visual e sim sua internalizada cegueira. Exibido no Festival Internacional de Cinema de Toronto 2016.