Um respeito abraço no artista puro
Por Bruno Mendes
Os palhaços promovem o riso e até um pouco de medo nas crianças. Riem das tragédias da vida e se levantam logo em seguida, partindo para outra. Não nasceram para ganhar, mas para perder. São simples. É como uma singela homenagem a estes artistas que surge o documentário “Pagliacci” (dirigido por Chico Gomes, Pedro Moscalcofi, Luiz Villaça, Luiza Villaça e Júlio Hey). Honesto e zeloso com os profissionais do riso, a obra expõe a rotina destes homens por trás da máscara e o modo minucioso de construir seus personagens e cenas.
No meado de 2016, “Pagliacci” foi imaginado como uma forma de saudar as duas décadas de existência da Cia La Mínima, grupo de circo criado por Fernando Sampaio e Domingos Montagner. O projeto que estava por vir, precisou ficar guardado após a trágica morte de Montagner durante as gravações da novela Velho Chico. Por sábia decisão, o doc foi tirado da gaveta e hoje rememora com encanto e emoção o artista puro e talentoso que veio antes do reverenciado astro global.
Em linhas gerais a obra apresenta o processo de criação do espetáculo, os rotineiros ensaios e a montagem com novos atores. É flagrante a mudança do tom de voz de Sampaio ao se referir ao amigo Domingos, mas ele segue em frente com a tarefa de levar a arte adiante com louvor.
Pagliacci é embalado em nuances poéticas e por vezes tira o público da posição de espectador de cadeira de teatro(ou de circo de lona). Enquanto toca linda música, a câmera quase dança entre clowns e a ótima intenção transporta o espectador para cima do palco. O público, portanto, torna-se participante da criação e é quase um co-autor das falas, o representante dos tropeços graciosos e receptor dos aplausos.
Nas entrevistas a experiência sai desse campo quase onírico e em enquadramentos tradicionais expõe a posição dos artistas sobre impressões diversas. Na concepção de um deles, “o palhaço perde a dignidade com dignidade”. Ao contrário de pessoas ditas comuns, não se traumatiza pela vida toda, mas ri e levanta. Palhaço é de verdade. Não aguarda aprovações e ri do ridículo que é a própria existência.
Sutilmente texto e imagens nos fazem lembrar que homens e mulheres do cotidiano geralmente colocam a lente de aumento na perspectiva da tragédia e identificam-se com os representantes da graça e do deboche, pois, na intimidade, se veem tão ridículos quanto.
Em outra passagem, uma participante do grupo teatro pontua “você tem que se casar com quem te faz dar risada” e um jovem participante da trupe diz que quando criança e foi a um circo soube o que queria fazer na vida. Aos risos e em identificável humor auto-depreciativo declara que talvez seja por que não precisa trabalhar.
Há pureza/liberdade de espírito do artista em considerar a encenação cômica um “não trabalho”. Ah, mas os palhaços suam a camisa, são zelosos e exigentes em seus ofícios. Domingos deixou um ensinamento que ilustra bem o pensamento coletivo, “seja o jardineiro de sua arte e não o arquiteto”.
Cada plano de Pagliacci prova o empenho máximo dos partícipes em melhorar as apresentações dia após dia. Aparar arestas e podar detalhes considerados ruins, mesmo que estes sejam imperceptíveis à plateia é regra . O arquiteto desenha uma produção e a deixa pronta, o jardineiro tem noção de que a grama cresce, torna-se irregular. Assim como o verde da natureza em decorações de residências, performances precisam de ajustes.
Louvando os já escassos e ainda mágicos circos de lona, o documentário acerta por não enfatizar caminhos lamentosos dos profissionais que montam e desmontam estruturas itinerantes e em amplas situações enfrentam dificuldades para conseguir um terreno. Não há choro, há adrenalina e prazer em ser uma espécie de outsider da arte.
Curto e sem invencionices, “Pagliacci” é um respeitoso abraço no artista que talvez até nem conste no lado b das tais manifestações culturais que usualmente consumimos como produto.
Fracassados e risonhos, reis, rainhas, príncipes e princesas da tragicomédia. Entre lindas piruetas, acrobacias treinadas e diálogos inspirados, a expressão artística de Domingos e Fernando insere crianças, adultos e velhos em lugares distintos!
É para isso que serve a arte!