Altruísmo mágico
Por Fabricio Duque
A escritora australiana Pamela Lyndon Travers publica em 1934, em Londres, uma série infanto-juvenil sobre uma babá mágica que aparece em uma tempestade para ajudar uma família. “Mary Poppins” é a personificação da esperança. Uma luz no fim do túnel. Um descanso divino que acalenta e resolve problemas. “Tudo é possível, até mesmo o impossível” é seu lema auto-ajuda de acreditar incondicionalmente no poder otimista.
E Walt Disney, responsável e conhecido por transformar dramas em fantasias, transforma em filme o clássico literário pela direção de Robert Stevenson (de “Jane Eyre”), em 1964, com Julie Andrews (que venceu o Oscar de Melhor Atriz) e Dick Van Dyke, unindo musical à humanização de seres inanimados e ou animais falantes. É uma quase explícita auto-biografia de sua autora, se assistirmos a versão de documento ficcional “Em Walt nos Bastidores de Mary Poppins”, do diretor John Lee Hancock, sobre a dificuldade de P.L. Travers de “libertar” sua própria obra, sendo importante para captar detalhes e porquês.
Em dezembro de 2018, cinquenta e quatro anos depois, a própria Disney traz a volta da Super Babá em “O Retorno de Mary Poppins”, nas mãos “cobradas” de Rob Marshall (de “Memórias de uma Gueixa”, “Piratas do Caribe: Navegando em Águas Misteriosas” e dos musicais modernos “Chicago”, “Nine”, “Caminhos da Floresta”). O longa-metragem, que encontra também ecos em “Nanny McPhee”, de Kirk Jones, busca a essência ao tentar conservar a inocência perdida quando uma criança se torna adulta e deixa de acreditar nos “excessos de imaginação” da infância.
“O Retorno de Mary Poppings” imprime um saudosismo com o toque do contemporâneo, apesar de sua nostalgia conservada de insinuar a solidão da “Mulher Maravilha” mágica. Seus números musicais transcendem o próprio gênero musical, como uma mistura de “Cantando na Chuva” com “A Bela e A Fera” com as performances sapateados em estilo “Stomp”, tudo “sob o adorável céu de Londres” (uma crítica visto a predominância característica do cinza e das névoas). Aqui é uma libertação de estilo da própria Disney, de condensar “carne e osso” ao universo animado dos desenhos, à moda inferência de “Uma Cilada Para Roger Rabbit”, de Robert Zemeckis, e a de inserir o classicismo no preâmbulo de abertura com pinturas cenas que remetem obras de Monet e Picasso.
Numa Londres abalada pela Grande Depressão, Mary Poppins (Emily Blunt) desce dos céus novamente com seu fiel amigo Jack (Lin-Manuel Miranda) para ajudar Michael (Ben Whishaw) e Jane Banks (Emily Mortimer), agora adultos trabalhadores, que sofreram uma perda pessoal. As crianças Annabel (Pixie Davies), Georgie (Joel Dawson) e John (Nathanael Saleh), “responsáveis demais nesta idade”, vivem com os pais na mesma casa de 24 anos atrás e precisam da babá enigmática e o acendedor de lampiões otimista para trazer alegria e magia de volta para suas vidas.
“O Retorno de Mary Poppins” é uma experiência Broadway nas telas grandes do cinema, um teatro filmado em estúdio com sotaque britânico. É também a aventura suavizada da vida de uma família. Os filhos ainda sofrem com a morte da mãe, o pai submisso precisa lidar com as dívidas de pessoas desonestas e hostis. As crianças representam a conservação dos sonhos. De que a felicidade existe. De que Deus existe e envia seu anjo mais organizado (e “osso duro de roer”). Seria Mary Poppins o próprio Deus personificado? Que “zoa” os irlandeses?
O filme traz outra característica técnica: a de distanciar a emoção para aprofundar a técnica e a magia da música e seus “tesouros sentimentais” mais naturalistas, como guardar a pipa (que empinava com os pais) para relembrar a incrível “atmosfera” da época da infância. A magia acontece. Os elementos da natureza representam as intervenções divinas. A resposta possível às dúvidas. A aventura começa. Como um sonho acordado, de embarcar em um navio na terra da imaginação, à moda de “Onde Vivem os Monstros?”, de Spike Jonze, e ou “Alice no País das Maravilhas”, de Tim Burton.
É um grande espelho refletido. De cores ultra vivas. Quase agressivamente infantis. Dos anseios e também dos medos que se encontram dentro de cada um. É “inacreditável” apenas para quem “não acredita” em “tolices” e “coisas impossíveis” (como o guarda-chuva que fala). É sobrenatural somente para quem não dá “asas” a própria mente. Tudo respeitando o puritanismo do passado: as roupas para tomar banho “divertido” e sem joelhos à mostra. “Não estrague a aventura com tantas perguntas”, ensina-se a “questão de equilíbrio”, entre animados universos paralelos de “tigelas musicais de arrepiar o gelo”, lenços que consertam rodas, de números circenses que permitem “bater em pinguins” e encontros com o “mundo virado de cabeça para baixo” de “Topsy Turvy” (e seus “novos pontos de vista” das segundas quartas-feiras do mês e de como “depender de como se olha para as coisas”), músicas de jazz cabaré e até um que de Buster Keaton e sua icônica cena no relógio. Aqui o Big Ben “sempre atrasado” salva o futuro da “Rua das Cerejeiras”.
Sim, é essencialmente uma obra de auto-ajuda, que “busca uma luz para guiar quando a pessoa se perde”. É o movimento Lume (com sua linguagem única de “longas tranças” para “danças”), do Iluminismo francês com a influência burlesca do cineasta italiano Federico Fellini. De repensar a própria vida e a existência, a simplificando com o que realmente importa: a família e a felicidade nas pequenas coisas, não somente no dinheiro. “Faça a luz piscar”, pede-se para transformar a rigidez preocupante do pai em alegrias desmedidas de não se torturar em não salvar o lugar onde mora (“É só uma casa”). Será que Mary Poppins conseguirá completar sua missão com “esperança, surpresa e diversão? “O Retorno de Mary Poppins” é sobre o retorno a ser criança e “escolher o balão certo”. “A vida é assim, acreditar é o único jeito de subir”, finaliza-se firmando com um cuidadoso apuro técnico da Direção de Arte, ainda que dê mais atenção à forma dos efeitos especiais que à liberdade do conceito propriamente dito, como a dança dos manequins de roupa do primeiro filme. E sim, há uma participação mais que especial de Dick Van Dyke.