Entre Subidas e Descidas Referenciais
Por Fabricio Duque
“Nós Duas Descendo A Escada” é acima de tudo um filme de crítico, visto que seu diretor gaúcho Fabiano de Souza (de “A Última Estrada da Praia”) escreveu para a revista “Teorema”, e assim condensou inúmeras referências cinematográficas ao longa de sua existência e que agora imprime cada uma delas em seu mais recente longa-metragem, que por sua vez se comporta como uma obra de instantes, de um cotidiano coloquial de poesia concretista e de sua linguagem de efeito em diálogos de uma simetria interpretativa que busca a própria desconstrução do equilíbrio unificado e de perspicácia objetivada. Essas elipses temporais são contadas por notícias jornalísticas que envolvem política e social e que parecem mais como ficcionais que realmente verdadeiros, talvez pela ambiência surreal (como “O homem enlatado em chaminé em Caxias do Sul”).
Logo de início, os cinéfilos-espectadores detectam uma narrativa mais livre, amalgamando a essência francesa da Nouvelle Vague (característica esta que sai do estúdio e encontra a realidade amadora das ruas) com a estrutura cinematográfica da primeira fase de José Eduardo Belmonte com a leveza do argentino “Medianeiras”, de Gustavo Taretto, com “Nove Crônicas para um Coração aos Berros”, de Gustavo Galvão, com “A Frente Fria Que a Chuva Traz”, de Neville d’Almeida e explicitamente (pelo encontro em um ônibus) com as obras de outro cineasta gaúcho, Gustavo Spolidoro, de “Ainda Orangotangos”, este filme, que por sua vez, teve o diretor em questão aqui na equipe como produtor.
Adri (Miriã Possani) é uma jovem recém formada na faculdade de artes que divide seu tempo entre o único amigo, o emprego e a terapia. Quebrando a monotonia de sua vida, um dia ela conhece Mona (Carina Dias), uma arquiteta bem relacionada e com dinheiro. Na escada de um prédio em Porto Alegre, nasce uma paixão de duas pessoas muito diferentes.
O cinema de “Nós Duas Descendo As Escadas” reverbera a máxima de filme família. Quase caseiro. São amigos, apaixonados pela sétima arte, que resistem ao cinema comercial e que buscam realizar obras mais autorais (por quebrar conceitos, permitir a liberdade do acontecer e expôr sensualidade sexual com sua câmera mosca – de estar quase como personagem, porém sem fazer com que sua presença seja percebida), ainda que conjuguem elementos de uma típica comédia romântica em sua narrativa à moda de “Peter Coyote” em “Lua de Fel”.
“Nós Duas Descendo As Escadas” caminha pelo limiar tênue entre naturalismo espontâneo e o anti-naturalismo encenado, e é muito mais que um retrato de comportamento social sobre identidade sexual. Aqui, a opção amorosa de duas mulheres (que querem “brincar de casinha” e de “caixinhas mágicas”) transcende a simples aceitação do gênero LBGTQUIA, porque fornece singeleza das reações de outros indivíduos (que rebatem com entendimentos diretos e sem freios – uma das características sulistas, que é a de não “enrolar” no politicamente correto – “Você é loira ou pinta o cabelo?”, “Os dois”), que cada vez compreendem mais esta “nova forma de amor”. “Porto Alegre só precisa acelerar”, diz-se entre o conhecimento efêmero, a rotina melodramática, o dia-a-dia de “olhos cortantes”, a intimidade fofa, a “boa pergunta” e a “bela resposta” que o casal vai desenvolvendo e construindo, como o jogo de títulos de filmes (de pergunta e resposta – como “Tudo Bem”, de Arnaldo Jabor) presente também em “Um Filme Francês”, de Cavi Borges) e como o tempo separado (incluindo um “Manual de Instruções para a despedida” e os “curativos superficiais como as redes sociais”) em uma Nova York normal sem glamour turístico (com trilha sonora de Chorinho), passando pela desilusão, vulnerabilidade, saudade, lembranças e a vontade do retorno antecipado com “o coração aos cacos”.
Entre referências literárias, como “A Arte da Guerra” (“Nunca demonstre seus sentimentos aos inimigos”), filosofia de botequim adulterado ao gaúcho, e reunião de amigos (e as drogas), “vampira que rouba a alma”, e música pop rock local, é inevitável não inferirmos a “Pequeno Dicionário Amoroso”, de Sandra Werneck, “Amores Imaginários”, de Xavier Dolan, “Vamos Fazer Um Filme”, de Cavi Borges e Walter Daguerre, “Apenas o Fim”, de Matheus Souza, “O Demônio das Onze Horas”, de Jean-Luc Godard, “127 Horas”, de Danny Boyle, “Falsa Loura”, de Carlos Reichenbach, “Quanto dura o amor?”, de Roberto Moreira e explicitamente “A Fraternidade é Vermelha”, de Krzysztof Kieślowski.
“Nós Duas Descendo As Escadas” personifica a poesia pela fala, a deixando palpável. E também a metalinguagem. Conversa-se sobre cinema, inclusive a cena final de “Casablanca”, de Michael Curtiz. “Ainda é cedo amor”, rebate-se com um trecho da música “O Mundo é Um Moinho”, de Cartola. “Leva meus óculos. Guarda meus olhos”, diz-se. Como foi dito, é um filme mais de crítico de cinema que de realizador. Referências pululam incessante e recorrentemente. Os posters de “Garotas do ABC”, “Na Estrada”, “Um Verão Escaldante”.
Aqui, é o máximo do Romantismo que desvirtua apontamentos com a atmosfera de Pedro Almodóvar, e assim, busca imprimir uma credibilidade naturalista editada. “A guerra está declarada”, de Valérie Donzelli, título deste filme francês que resume praticamente tudo que se precisa explicar. “Isto não é um filme”; “Carnaval, vai, vomita e volta”; diário de luzes; a exposição “Vazio” de Leonilson; a cena lésbica de “Titanic”; o ciúme; a musica de Tulipa Ruiz; a experiência LSD (com câmera epifania psicodélica). Enfim, todos os detalhes e conflitos são fofos demais, resolvidos rápidos, como a cena de uma que se joga na escada, o pseudo término, o estímulo psicótico-passional, a desconstrução do amor por destruições simbólicas dos detalhes. Trocando em miúdos, é uma versão feminina e de comédia romântica de “Felizes Juntos”, de Wong Kar-wai. Concluindo, um filme que merece ser visto, até como uma brincadeira quiz de descobrir o maior número de referências cinematográficas nas cenas. O filme ganhou o prêmio de Melhor Longa-Metragem pelo Júri Popular no CLOSE (Festival Nacional de Cinema da Diversidade Sexual).