Curta Paranagua 2024

Crítica: Nico, 1988

O presente do passado

Por Michel Araujo


“Nico, 1988”, longa estreante da diretora Susanna Nicchiarelli, não economiza esforços para nos colocar na psique da artista Nico (nascida Christa Päffgen), ex-integrante do Velvet Underground e estrela de diversos dos filmes do célebre vanguardista francês Philippe Garrel. No filme, integrante da curadoria do 8 1/2 Festa do Cinema Italiano, acompanhamos os últimos momentos da carreira musical de Nico (Trine Dyrholm) em que o presente não se mostra como tempo principal da narrativa, mas sim o passado, e as consequências trazidas dele. Com sua carreira atual estando à sombra de sua participação no Velvet Underground, seu estabelecido vício em heroína a debilitando psicológica e fisicamente, além da criação negligente de seu filho ter resultado num jovem de aguda fragilidade emocional, percebemos que a perspectiva de presente e futuro promissores para a protagonista se desmanchou quase por completo.

O filme se destaca especialmente no desenho sonoro, o que, se tratando de uma história sobre uma artista musical, é um ponto estético crucial. Ao longo do filme somos acompanhados por digressões em silêncio abismal, quando não estamos a ouvir uma das diversas performances musicais da personagem. Há um quê de cinema musical na representação da trama se transfigurar em músicas ao longo do filme, porém sem a quebra diegética de números de dança ou espetáculos. No drama manifestado pela música, há apenas o som e silêncio, e o contraste entre o que se vê e o que se ouve, com recorrentes lapsos de memória do auge da carreira de Nico, todos num visual de filmagem em 16mm, marcando temporalmente os flashes de Andy Warhol e das ruas americanas da década de 1960.

A atuação no geral é de mediana a boa, cumprindo as necessidades da trama e não muito mais que isso, excetuando a da atriz principal Trine Dyrholm que se destaca com sua visceral incorporação da decadência do artista em Nico. As performances musicais sempre deixam escapar aos olhos do público uma enorme, porém reprimida, perturbação emocional, o que somado aos flashes e ao que sabemos sobre o que se passa na vida privada da cantora, constrói muito bem a subjetividade psicológica da protagonista. Sabemos da rápida deterioração de seu corpo e mente em função do vício, assim como o tormento de seu passado artístico e sua relação maternal mal estabelecida, o que, portanto, para nós espectadores amplia a visão de sua arte, e traz a reflexão do que realmente é manifestado pelo artista com suas obras, e o quanto ela pode estar dizendo sobre sua vida de fato.

A fotografia se mantém naturalista pela maior parte da obra, excetuando os flashes em visual de 16mm que além de possuírem esse traço histórico-documental, que marca temporalmente a imagem, adquirem uma suspensão da objetividade, portanto, sendo planos subjetivos, a marca visual granulada e de coloração rosada se insere numa perspectiva psicológica de memória e envelhecimento. Fossem estes flashes meramente reconstituições naturalistas de cenas do passado, com propósito narrativo ou expositivo, não poderiam ser julgados por um viés tão psicanalítico, com possibilidades de leitura não apenas da composição do filme, mas da construção do interior da personagem. A heterogeneidade da fotografia estabelece, portanto, um corte bem demarcado entre a realidade objetiva e o psicológico subjetivo, que se entrecortam, porém, não se confundem. Passado e presente são como água e óleo, os quais podem ser nitidamente diferenciados, e mesmo o aproximando voltarão a ser um só. O tempo anterior permanece na manchada memória da pessoa, a qual é mortal e levará consigo essas imagens, que nunca serão revisitadas.

No ano de 1988 Nico faleceu de hemorragia cerebral enquanto andava de bicicleta, por consequência de seus vícios. O último plano do filme nos mostra a personagem saindo de casa para um passeio de bicicleta, porém sem nos mostrar seu destino, ou mesmo de onde está saindo. Apenas os portões motorizados se abrindo automaticamente, como que abraçando a personagem em sua saída do mundo material. Um contraste com a cena inicial quase apocalíptica de uma pequena e jovem Nico observando uma tempestade a se aproximar. O fim harmonioso para uma vida tão errática e discordante. Esse traço minimalista a respeito traz consigo uma ambiguidade acerca do fim e da perpetuação. A artista “saíra da vida para entrar para a história”, citando a célebre fala de Vargas.

4 Nota do Crítico 5 1

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