Metáfora para depressão!
Por Pedro Guedes
Basta surgir um filme de suspense ou terror que, de imediato, aparece alguém para dizer que se trata de uma “metáfora pra depressão” – o caso mais recente é o de “Bird Box”, que muitos encararam desta forma. Aliás, isso chegou a virar piada interna entre um grupo muito específico de cinéfilos, que enxergam este tipo de interpretação como uma tentativa forçada de valorizar obras medíocres.
Tendo isto em mente, é simplesmente impossível assistir a “Não Olhe” sem pensar no conceito facebookiano de “metáfora pra depressão”, já que o filme praticamente implora para que o espectador reconheça os paralelos que o diretor/roteirista Assaf Bernstein estabelece entre a jornada da protagonista e os problemas que afligem a vida da maioria dos adolescentes. E o mais curioso é que, não satisfeito em apresentar ideias óbvias e batidas, o roteiro ainda faz questão de martelá-las através de diálogos terrivelmente expositivos que mastigam para o espectador o significado de suas metáforas, como se estivesse convencido de que sua premissa é genial e quisesse ostentar sua inteligência para o espectador.
Dirigido e escrito pelo israelense Bernstein (que realizou apenas um longa antes deste: “The Debt”, de 2007), “Não Olhe” é uma produção canadense que conta a história de Maria Brennan, uma adolescente introvertida, vítima de bullying e socialmente deslocada que se esforça para encaixar nos padrões estabelecidos por seus colegas, porém jamais obtendo sucesso. Chega um dia, no entanto, em que Maria se olha no espelho e vê refletida ali a imagem de Airam, uma espécie de “Maria do mal” (me perdoem, mas não encontrei expressão mais apropriada) que aos poucos começa a dominar o corpo da garota e induzi-la a cometer atrocidades contra algumas das pessoas ao seu redor.
Como podem perceber, criatividade é algo que falta ao filme (não preciso nem dizer o quanto sua trama remete à de “Carrie, a Estranha”, não é mesmo?) – o que não seria um problema tão grande se, pelo menos, o roteiro soubesse desenvolver sua premissa. Mas não é o caso: entregando-se aos clichês sem qualquer tipo de reserva, “Não Olhe” cria algumas metáforas que, de tão óbvias, talvez nem devam ser consideradas metáforas. Não é preciso pensar muito para constatar que Airam é um símbolo da rebeldia que surge como consequência da insegurança habitual da adolescência, pois aparece num momento em que Maria se encontra no centro de uma tempestade emocional e faz a jovem cometer diversas atitudes condenáveis (e, como se trata de um filme de terror, estas atitudes podem ir de uma simples grosseria até um espancamento que resulta em morte).
Aliás, sutileza é algo que “Não Olhe” definitivamente não tem: logo nos primeiros minutos, Bernstein apresenta a protagonista da maneira mais tola e artificial que se pode imaginar, estabelecendo seu isolamento através de um plano em câmera lenta onde a garota caminha pelo corredor da escola, põe os fones de ouvido e escuta uma música melancólica enquanto seus colegas, ao fundo, riem de sua cara. Como se não bastasse, pouco depois surge uma cena na qual o pai de Maria basicamente fala tudo que havia ficado claro até então (“Ela é deslocada, fora do padrão, solitária, não tem amigos, nunca sai para fazer nada, etc”), resultando num embaraço que só é igualado pela sequência ambientada no baile escolar (existe clichê maior, em uma história voltada para adolescentes, do que uma “provação” que ocorre num baile escolar?) e pelo fato de Maria fumar cigarros a partir do instante em que se torna “malvada”. Para completar, a cabeça de alguém vai explodir se eu apontar o fato de que “Airam” é “Maria” ao contrário?
Em compensação, a direção de Assaf Bernstein toma algumas atitudes formais que funcionam relativamente bem – e a ideia de Airam surgir em um espelho é interessante, pois reflete (com o perdão do trocadilho) o hábito que Maria tem de sempre se preocupar com sua aparência; o que resume bem sua falta de autoestima. Além disso, a fotografia de Pedro Luque não só aproveita os espelhos para compor imagens plasticamente elegantes (as conversas entre Maria e Airam se tornam ainda mais eficientes em função disto) como ainda trabalha bem as sombras e os contrastes entre preto, branco e cinza que existem, por exemplo, no banheiro frequentemente ocupado pela protagonista.
Mas no fim das contas, há sempre o roteiro para comprometer algumas das principais virtudes da obra – e se os personagens não passam de meras caricaturas (o bully do colégio é uma reimaginação pouco imaginativa de Draco Malfoy, da série “Harry Potter”; o pai de Maria é um cirurgião que vive dando dicas de como “consertar” sua beleza; o interesse amoroso da menina é um rapaz bonzinho; etc), as relações entre eles tendem a torná-los ainda mais inverossímeis (quando Maria diz que conhece Lily, sua melhor amiga, desde os três anos de idade, o espectador se vê incapaz de acreditar nesta afirmação, pois a amizade entre ambas foi estabelecida de forma superficial e esquemática).
Exibindo um olhar explorador ao enfocar o corpo nu da protagonista com uma frequência notável, “Não Olhe” ainda conta com uma atuação central que deixa a desejar, já que, embora seus olhos grandes sejam inevitavelmente expressivos, a jovem India Eisley pouco faz para diferenciar Maria de Airam (a primeira preserva uma expressão sofrida do começo ao fim, ao passo que a segunda transmite sua ameaça através da frieza absoluta – ou seja: ambas têm praticamente o mesmo semblante, sem pontuarem suas performances com muitas características particulares).
Desta forma, o resultado pode até não ser uma experiência dolorosa para o espectador, mas é frustrante perceber que o roteiro sucumbiu ao próprio ego e se deixou desperdiçar algumas ideias promissoras. Ser apenas uma “metáfora pra depressão” não é o suficiente.