Curta Paranagua 2024

Crítica: Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississipi

O racismo de ontem e de hoje

Por Bruno Mendes


A guerra dos bombardeios aéreos, dos corpos decepados, das mortes de amigos e dos traumas incalculáveis está presente, mas não define o mal maior no universo fílmico de “Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi” (dirigido por Dee Rees e roteirizado por Virgil Williams). O racismo deflagrado em solo americano é o grande câncer do longa e tais mazelas expostas permanecem vivas em tempos “trumpianos”, mesmo que em facetas distintas.

A lente da diretora Dee Rees também não deixa de focar as difíceis condições de vida no meio rural e a falta de voz da mulher em período que ser solteira depois dos 30 era considerado vergonhoso. A guerra é uma doença moral da humanidade, mas há aberrações na sociedade estaduninense tão devastadora quanto os conflitos bélicos justificados por “questões de interesses nacionais”. E nesse sentido, Mudbound olha “para dentro” com necessária crítica, e embora, o voiceover seja utilizado com certo exagero, o roteiro é hábil ao confluir tramas e pontos de vista com elegância.

Naquele microcosmo a maioria dos personagens tem voz, sonhos, medos e (des)esperanças proferidas em modos próprios. Como cinema é, sobretudo, arte de apelo visual e exerce sua força no chamado “sentido conotativo”, os tons escurecidos da fotografia (cuja diretora Rachel Morrinson é a primeira mulher a ser indicada ao Oscar até agora) e os cenários majoritariamente sujos e lamacentos entregam com comovente clareza a atmosfera de percalços.

Ambientada no período da Segunda Guerra, a história adaptada do livro de Hillary Jordan, acompanha o início de relacionamento de Laura (a atriz Carey Mulligan) com Henry MacAllan (o ator Jason Clarke) e a mudança do casal para uma fazenda nas proximidades do rio Mississipi. As tensões raciais surgem quando a família precisa contar com o trabalho braçal nas atividades campestres de Hap Jackson (o ator Rob Morgan), marido de Florence Jackson (a indicada ao Oscar de atriz coadjuvante Mary J Blige) e pai de Ronsel Jackson (o ator Jason Mitchel). Quando o irmão de Henry, Jamie McAllen (o ator Garret Hedlund) conhece Ronsen, tem-se início certa ruptura nas regras sociais que imperavam por ali.

As distintas perspectivas não perturbam a organicidade dos caminhos de Mudbound. Pelo contrário, o conjunto de percepções ainda reforçam a impressão sobre aquele contexto social problemático e – sendo mais enfático – doentio.

Laura (Mulligan sempre competente) é uma mulher de 31 anos, que se casa com Henry sem estar apaixonada, mas se sente realizada e agradecida pelo afeto demonstrado pelo parceiro. Inteligente e incontestavelmente urbana, encontra mínimos lampejos de felicidade na nova morada desconfortável.

O atualmente identificado “racismo cordial” é elencado com sabedoria na relação entre Henry e Hap. Ainda que não existam rusgas veementes, a empáfia e o tom imperativo do homem branco nas mini-conversas são evidentes e deixam claro quem está no topo daquela hierarquia social.

É a partir do encontro entre Jamie (Hedlund em interpretação digna de premiações) e Ronsel que a força do filme atinge seu ápice e o cinema de Rees entra naquela gaveta de obras de artes que deslocam o espectador para o espaço reflexivo, crítico, contestador e necessariamente, incômodo.

O papel fundamental da arte é confrontar o status-quo e “incomodar”,por temas apresentados ou pela forma? Creio que definir um “papel da arte” já seja algo, por si só, careta. Contudo, quando o universo cinematográfico expõe de forma contundente uma das maiores mazelas humanas de toda a história, o produto artístico torna-se socialmente importante e – no melhor sentido possível – um bem pedagógico.

“Mudbound – Lágrimas sobre o Mississipi” congrega aqueles elementos do “cinema épico” que deslocam o espectador para o espaço da emoção. Sim, os símbolos da manipulação ali estão e já que falamos em gaveta, também destacam na obra a etiqueta de “filme comercial”. As narrações emocionadas, closes em rostos, trilha sonora comovente. As convenções aparecem em Mudbound, mas estas felizmente não denotam preguiça na concepção artística.

As lágrimas do Mississipi chegam ao espectador de hoje graças à força de uma história bem escrita e bem apresentada no conjunto de cenas. Se na década de 1940 brancos e negros entravam e saiam de estabelecimentos comerciais por portas diferentes, hoje ainda lemos notícias sobre ataques de grupos supremacistas.

Por importantíssimas razões a obra de Dee Rees merece amplo respaldo!


“MudBound”


A tímida Laura (Carey Mulligan) acredita ter tirado a sorte grande quando encontra Henry McAllan (Jason Clarke), um homem um pouco bruto, mas interessado nela. Logo após o casamento, a família se muda para uma fazenda no chuvoso delta do Rio Mississipi.

Enquanto Laura enfrenta dificuldades para se adaptar à vida rural, ela é confrontada com uma família negra, os Jackson, responsáveis por ajudar no trabalho pesado com o plantio e a colheita. Duas posições muito distintas se desenham na família: enquanto o pai idoso de Henry, Poppy McAllan (Jonathan Banks), luta para manter os privilégios dos brancos no terreno, o irmão de Henry, Jamie McAllan (Garrett Hedlund), desenvolve uma boa amizade com o filho dos caseiros, Ronsell Jackson (Jason Mitchell), pelo fato de ambos compartilharem traumas da guerra.

Um violento conflito de etnias, gêneros e classes sociais marca a convivência entre os McAllan e os Jackson.

4 Nota do Crítico 5 1

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