Uma carta escolar ao tio roqueiro
Por Bruno Mendes
Apadrinhada pelo mutante Arnaldo Batista, a banda Joelho de Porco foi uma das mais icônicas da década de 1970. Certamente cabe naquela caixinha dos grupos que estiveram “a frente do seu tempo” e nunca repousaram na comodidade mercadológica. Em tempos de caretice, repressão governamental e em, alguns termos, adestramento moralista, os garotos tresloucados “pulavam o muro” e divertiam a rapaziada com criatividade incomum. A banda desconheceu o grande sucesso e hoje não é tão lembrada, mas é claro que há uma história a ser contada, há aventuras pessoais interessantes ali e acolá e o anseio de imortalizar instantes saudosos dos barulhentos poéticos. Assim, o cineasta Rafael Terpins expõe no documentário “Meu Tio e o Joelho de Porco”, a história do seu tio Tico Perpins na banda e dos integrantes que a compunham.
Lá estão o vocalista Próspero Albanese, o baixista Rodolfo Ayres Braga , o vocalista e ator Dick Petra. Animador profissional, Terpins utiliza um boneco animado pra representar Tico Perpins, morto em 1998. É ótima a idéia de atribuir à figura animada um caráter rebelde, anárquico, invasivo, que interrompe a fala dos entrevistados para corrigir uma coisinha aqui e outra acolá e, obviamente, tirar um sarro. Assim, o diretor traz para o presente a luz cômica do tio que somente está impressa, em perfeita retidão, no seu imaginário.
O grande mérito de “Meu Tio e o Joelho de Porco” está, justamente, na eficaz apresentação deste universo familiar ao público. É um documentário feito por quem tem a paixão jovial similar às crianças que escreviam cartinhas sobre as férias, capta-se experiência semelhante ao do garotinho que passeava de carro com o tio maluco e boa praça, que contava histórias engraçadas e ,hoje, inesquecíveis. Tais sentimentos são peculiares e criam efeitos inenarráveis na memória de cada um. Ainda que particulares sejam as apreensões sentimentais, nesta obra, ao som das músicas e após as falas de cada entrevistado, o público tem a oportunidade de conferir o quão marcante foi Tico Perpins e a Joelho de Porco para o cineasta.
Por meio desta abordagem, Meu Tio e o Joelho de Porco torna-se tão intimista/particularizado que o ímpeto de inserir a banda – e o próprio tio – dentro da perspectiva cultural da época (onde existiam outras bandas e uma juventude sedenta por diversão e bebedeira) é praticamente nulo. O rock desbocado e irreverente daqueles garotos “malucos” não deixa de ser uma influência direta ou indireta para grupos como Raimundos, Ultraje a Rigor e Mamonas Assassinas, mas Terpins não tem o interesse em trazer o seu registro para uma perspectiva pública.
É claro que se o documentário fosse para um caminho episódico, perderia no aspecto personalista e poderia parecer mais um material jornalístico impessoal sobre a banda criativa que “mandou banana para o senso comum e fez um rock poderoso e sui generis”, por exemplo. Em entrevista, Rafael diz que o Joelho é “elo perdido entre a Tropicália e a rock dos anos 80”, mas gravar a relevância artística do grupo não é a ímpeto-mor do projeto. É honesto estabelecer que este não seja um documentário de “manchete”, não é um trabalho de exaltação do artista por uma perspectiva ampla. A exaltação aqui cabe no imaginário daquele garotinho criativo que, como frisei, relatava em cartinhas suas impressões.
É uma pena que a amável “carta de Terpins sobre o tio” não ofereça mais elementos – mesmo que distante de caminhos episódicos – para que leigos tenham a oportunidade de conhecer e criar identificação com a natureza anárquica do roqueiro que subia ao palco utilizando fantasias de terror e que bebida uma garrafa de conhaque por noite.
Há um quê de egoísmo, não necessariamente negativo ou escorado em soberba, que dificulta a imersão do público naquele idiossincrático universo da banda, que merecia ser aclamada por um público maior.
Rafael abriu a porta da sua casa para o público, mostrou a sala, cozinha, banheiro, mas deixou de destrancar algumas gavetas importantes do armário. Quem conhece a Joelho de Porco teve oportunidade de conferir relatos pessoais curiosos sobre Tico, porém, faltaram apontamentos mais amplos sobre o sujeito que tinha uma “contradição furiosa com ele mesmo” e sobre banda que foi uma das pioneiras na cena independente.
De todo modo, “Meu Tio e o Joelho de Porco” é um trabalho interessante. Se o rock vive e reverbera fora do criativamente esvaziado eixo comercial, os garotos setentistas já mostravam que o grande barato é seguir o próprio caminho.