Um Épico Antropológico de Resistência
Por Fabricio Duque
Definitivamente, “Martírio”, de Vincent Carelli, codirigido Ernesto de Carvalho e Tita, e avisado previamente na sessão de abertura da VIII Semana dos Realizadores, não é um filme fácil e potencializa a máxima de Jean-Paul Sartre de que “O inferno são os outros”. O documentário de cento e sessenta minutos, “financiado pela Sociedade civil brasileira”, desenvolve-se por um épico antropológico étnico, voltando ao tema da retomada dos territórios sagrados Guarani Kaiowá, que foi abordado pelo diretor indigenista na década de oitenta. Vinte anos mais tarde, tomado pelos relatos de sucessivos massacres, Carelli busca as origens deste genocídio, um conflito de forças desproporcionais: a insurgência pacífica e obstinada dos despossuídos Guarani Kaiowá frente ao poderoso aparato do agronegócio e do “lobby ruralista”.
“Martírio”, narrado de forma sentimental pelo próprio documentarista, analisa os porquês de todo este sofrimento ao dar voz aos índios “sobreviventes”, que aprenderam a se adaptar ao Sistema e que sempre conjugaram naturalidade com o elemento de uma câmera filmadora, esta como um artifício de serem ouvidos com suas dificuldades existenciais de pertencimento social. Aqui, a narrativa encontra a metalinguagem da imagem. O povo indígena assiste sua própria história em um cinema improvisado nos acampamentos (“roças coletivas”) e uma senhora se emociona “com a voz do irmão falecido na tela”. E é quando a pergunta “O que vocês querem ouvir deles?” é encaminhada aos realizadores deste filme, então, nós, “homens brancos malvados”, somos acometidos a pensar em nossa jornada social humanista de buscar respostas, causas, consequências e “memórias que desmontam uma cronologia”.
O documentário, uma aula didática em capítulos desenvolvidos, constrói esta trajetória pelo viés unilateral (que é logicamente compreendido pelo espectador pela visão parcial de “dar voz a este povo sofrido”) por arquivos históricos (“em uma época que não tinha Facebook”), telejornais televisivos, canal TV Senado e “notinhas na Folha de São Paulo”), que explica os despejos e as saídas da terra por ordens e processos oficiais judiciais. “Voltamos três vezes e fomos despejados três vezes”, diz-se. Assim é conduzido um questionamento sobre a origem natal e se um “índio paraguaio” (“fugido durante a Guerra do Paraguay”) “pode ou não” ser “reintegrado” por nossa sociedade. “Já temos tantos brasileiros para alimentar, ainda temos que dar para estes que não são daqui”, enaltece-se um congressista em uma sessão “circo político”.
Ao público, outra “pulga na orelha” é despertada. “O que fizeram com os índios ao longo de todo este tempo?”. Eles, considerados “errantes, à margem, sem importância”, só precisam e dizem, entre choros, que “querem um pedacinho de terra para as crianças que estão crescendo” e que encontram um mundo hostil em que uma “cabeça de gado vale mais que gente” e “uma vaca vale mais que vinte crianças”. “Os juízes tinham que vir aqui para ver a realidade que julgam”, diz-se.
“Martírio” é a eterna briga fazendeiros (que “lutam por suas áreas devolutas” para suas indústrias de Erva-mate) contra “antropólogos que dizem que as terras fundiárias são territórios indígenas” e contra “índios que inventam o lugar de suas aldeias – “palácios” – natais” e que investem plenamente em “casos extremos de resistência”, como “acampar doze anos na beira da estrada” e “reclamar” com o Papa.
Aqui, entre a “civilização dos índios por Rondon” (que “afastava os costumes”), a SPI (que “deportava”, a Funai (“um órgão do Governo”) , também é reverberada a máxima do “quem veio antes: o ovo ou a galinha?”, tudo porque os “índios são de algum lugar, mas de onde? Tomaram tudo deles”. Não há como o espectador sair imune. De forma alguma. Os indígenas acreditam que a “terra pertence ao Criador (Deus) e para usufruto de todos” e que “a sabedoria vem dos ancestrais”. O transe religioso também é visto por políticos, não como cultural e costume típico e sim como uma “diversão” (“Bebem o Santo Daime, tem um sonho e querem terra”).
O filme, que corrobora que o “povo indígena tem um jeito de pensar, uma maneira de viver”, discursa a luta pela contundência enérgica, força passional e utopia sonhada dos “líderes indígenas” contra a “emancipação” e no momento, contra o Governo da Dilma. “Nós todos aqui votamos nela, rezamos para ela ganhar. Para depois ela fazer apoio com os Fazendeiros. Dilma assassina”, diz uma líder, que não se considera líder porque “todos são lideres até mesmo o cachorrinho”. “Estamos em pé, mas cheirando vela a nosso redor”, complementa-se.
“Martírio” aborda sobre os medos “permanentes ressaltados” dos índios; sobre agropecuaristas (que criaram a PEC 215) contra o “MST, o Código Florestal e agora os índios”; e sobre a “coragem e espiritualidade de um povo”, que cada vez se torna mais “branco civilizado” por usar camisas do Cinemark” e da Nike Hexa Brasil com o a frase “Nunca desista do que pertence a você mesmo”, e que finaliza com a frase do documentarista Rithy Panh. Como já foi dito, não é um filme fácil. Até porque somos confrontados em nossos comodismos, zonas de conforto e ilusões sociais e porque representa um documento necessário e obrigatório de uma disputa secular.
“Esse filme não é um cinema de entretenimento, é um cinema de guerrilha. É difícil de romper, nossa meta sempre é essa, nada de gueto, de botar os índios no armário do cinema etnográfico. Festival é bom para promover o filme, para tornar conhecido. Agora cinema, se você for ver o custo do investimento por ingresso, você faz 2mil, 5mil pessoas assistindo. Na televisão, você alcança 200 mil, 300 mil, muitas projeções. Objetivamente eu penso mais nisso. Eu acho que a gente vai fazer desse filme uma série, ele desmembrado, como ele é um filme de 160 minutos, ele merece capítulos. Meu cinema vem da minha relação com os índios. Então esse é o universo que eu trabalho. Parece, para quem vê de fora, que é monotemático. Mas não! Os índios são um universo de temas, então cada um dá a contribuição na área que você tem competência, mundos que você conhece. Esse é um cinema de urgência. Tem um genocídio ocorrendo há mais de 30 anos, que está se agravando porque ninguém resolve coisíssima nenhuma e os índios não estão a fim de abrir mão de retomar as suas áreas, que é uma porção ínfima do que eles teriam direito. O martírio é isso, nós não temos dinheiro para comprar as nossas terras, mas temos o nosso sangue, para derramar por elas. Isso é um discurso que está no filme. Essa é a própria definição do martírio”, finaliza o diretor Vincent Carelli. MELHOR FILME ELEITO PELO JÚRI POPULAR – FESTIVAL DE BRASÍLIA 2016. E integra a vigésima edição da Mostra de Cinema de Tiradentes 2017.