O evangelho feminista
Por Bruno Mendes
O Evangelho Cristão Maria Madalena já existia durante o período da morte e sepultamento de Jesus Cristo e a personagem foi considerada a primeira testemunha da ressureição. Contudo, no ano de 591, o papa Gregório concluiu que Maria era uma prostituta e somente em 2016 ela passou a ser identificada como apóstolo e a primeira a dar a mensagem da ressureição de Cristo. No longa “Maria Madalena” (dirigido por Garth Davis, do filme “Lion – Uma Jornada Para Casa“), a personagem feminina obscurecida pelo ideário cristão ao longo de tanto tempo, é mostrada como uma das figuras humanas mais relevantes do último ano de vida de Jesus.
Maria Madalena estabelece sintonia pontual com questões infelizmente contemporâneas, afinal vivemos tempos de constantes enfrentamentos da violência contra a mulher e posições fortes contra o machismo em vários seguimentos da sociedade ainda se fazem necessárias. A protagonista representada pela atriz Rooney Mara é uma daquelas pessoas ‘além do tempo’ e enfrenta a família para fazer o que tem vontade, sendo considerada “possuída pelo demônio” em razão das crises observadas, originadas, evidentemente, por pura insatisfação e sensação de ‘não pertencimento’.
Maria escapa de um casamento planejado e de toda a opressão vivenciada na dinâmica familiar, encontra o líder carismático Jesus de Nazaré (o ator Joaquin Phoenix) e segue, junto aos Apóstolos, na missão de propagar ensinamentos de paz em uma jornada até Jerusalém. Ambientado no ano de 33 do calendário vigente, o longa tem design de produção competente e os cenários transportam o espectador para o período das andanças de Cristo. A fotografia explora com vigor a tímida luz do sol que exibe montanhas ao fundo, cavernas, praias e a imensidão desértica de toda a gama de cenários.
As interpretações também se destacam. Se menos pela força das palavras e mais em função de atitudes e olhares acolhedores Rooney Mara concebe uma personagem inteligente, sensível, empática, mas acima de tudo transgressora e corajosa, Phoenix traz um Jesus completamente humanizado e visivelmente perplexo com o reinante “caos moral” daquela sociedade.
Se há completa ausência de ódio, e integridade e paz de espírito – em determinada passagem um grupo de mulheres reclama sobre a ação truculenta de homens e quando uma delas afirma que uma mulher havia sido violentada por ter traído o marido e demonstra raiva, Jesus questiona: “O que você vai fazer com o seu ódio? – o filho de Deus, expõe cansaço e certa tristeza em sua jornada. Nesse sentido, menos do que o super-herói das aulas de catecismo, observamos uma figura humana de carne e osso.
Infelizmente o convencionalismo narrativo empurra Maria Madalena para a fileira de tantos filmes e seriados bíblicos que passam ao longo dos anos. Apesar dos personagens multi-dimensionais, os caminhos do longo seguem no piloto automático e em distintos atos, até a presença da protagonista é reduzida. Observamos Jesus ressuscitando Lázaro, expulsando os vendilhões do templo de Jerusalém, sendo traído por Judas (Tahar Rahim) e entregue aos Romanos. Pode-se dizer que há ‘exatidão bíblica’, mas o longa carece de melhor desenvolvimento rítmico e organicidade na apresentação dos acontecimentos, em especial nos últimos atos.
De todo modo, Maria Madalena merece ser apresentado ao público, seja este cristão ou não. A fé (e a falta dela) é algo pessoal, inquestionável, mas não podemos negligenciar a relevância social do cristianismo, principalmente quando nos referimos à sociedade brasileira. Se lamentavelmente a religião ainda reforça machismos e transborda resistências no quesito ‘quebra de paradigmas’, é louvável que uma personagem que viveu as primeiras décadas desta era já possa ser considerada um símbolo contra a opressão e uma figura transgressora.
Não é difícil imaginar as razões que levaram Maria Madalena a ser maltratada pelo cristianismo por tantos séculos. Religião é poder. Buscas incisivas por rupturas não interessam a hierarquias, lógico.
Entre todos os apóstolos, a transgressora Maria é a que melhor entende os verdadeiros ensinamentos de Jesus Cristo, a busca do olhar e da paz interior, do afastamento do ódio, etc. Não é preciso consertar o mundo ao redor, mas a si mesmo.
Como cinema, Maria Madalena é irregular, contudo, não deixa de ser importante que uma obra transporte o feminismo para “instâncias sagradas”. O mundo pede reflexão e renovação de conceitos, Maria já tinha nos ensinado no seu Evangelho.