Márcia Haydée: Uma Vida pela Dança

A Construção de Um Ídolo

Por Michel Araújo


Sem dúvida um nome a ser celebrado, Márcia Haydeé coloca o Brasil – como tantos grandes ícones – no mapa mundial das artes. Exaltamos Rocha, no cinema, Assis na literatura, Cavalcanti na pintura, ou Villalobos na música, e ai de nós não nos orgulharmos da expressividade e inventividade de Haydeé na dança e mesmo sua perseverança em contribuir para o balé como diretora da companhia alemã Stuttgart Ballet, após o falecimento de John Cranko. Entretanto um cuidado a ser tomado com Rocha, Assis, Cavalcanti, Villalobos e por conseguinte com a própria Haydeé é da mitificação do ícone. Em “Márcia Haydée: Uma Vida pela Dança” (2019), há alguns deslizes nesse sentido, enquanto outros momentos colocam Haydeé como uma figura mais plástica, humilde, humana. A discussão em questão está longe de se tratar da efetiva personalidade de Haydeé, mas da maneira como ela é construída e representada em forma fílmica, sendo assessorada pelo discurso cinematográfico.

Dirigido por Daniela Kallman, o longa desponta com alguns relatos do nascimento de Márcia, em especial a escolha de seu nome que foi motivada pela fácil pronúncia em diferentes idiomas na esperança de que ela se tornasse uma celebridade, e sua assinatura perfeitamente caligrafada desde pequena, ambas histórias que apontam uma espécie de pré-destinação quase teleológica ao estrelato. São histórias curiosas e mesmo enriquecedoras para a dramatização no filme, à princípio. Eventualmente alguns dos entrevistados farão colocações acerca do estrelato que são consideravelmente nocivas para a compreensão do estrelato e do show business, e essa serão a opiniões mais idólatras que colocam o sucesso num plano idealizado acima de uma soma de esforços, investimentos, oportunidades e contatos, assumindo a concepção idealista de “dom”.

A dançarina e coreógrafa, Ana Botafogo dirá que para o mundo da dança o encontro de Márcia Haydée com o coreógrafo John Cranko foi um “encontro dos deuses”. Andreza Randisek, dançarina na companhia de balé de Santiago dirá que, equivalente a Haydée “não existe outra, e não vai existir”. De fato, o mundo da dança – assim como das artes no geral – se reconfigurou tremendamente da época do auge de Haydée – década de 1960 – até os dias presentes, o star system está cada vez mais desmitificado na maioria das áreas, e a possibilidade de ascensão e reconhecimento a níveis de uma Márcia Haydée já não se mostram uma possibilidade – em sua época apesar de possível, já não o era muito plausível.

Noutros momentos que não os de idolatria, temos uma conexão mais humana com a persona de Haydée. O diretor da Hamburg Ballet, John Neumeier fala de quando a convidou para jantar em sua casa, um quartinho humilde, e mesmo não sabendo cozinhar, Márcia abraçou o ambiente e a hospitalidade de John, que finaliza a pequena parábola com “Márcia é uma artista porque é uma ótima pessoa”. Essa relação entre o amor e a compaixão, e como estes se transfiguram na arte é muito importante de ser pontuada. O cerne da questão, portanto, reside justamente em inspirar as novas gerações de dançarinas e dançarinos através da arte, da originalidade e desse grande amor de Márcia Haydée.

Estamos, também, num novo mundo com possibilidades expandidas ad infinitum pelo advento das telecomunicações digitais, em que é possível divulgar seus trabalhos em escalas não tão grandes quanto do eixo central das grandes companhias, porém que suprem a constituição de pequenos nichos de espectadores mais específicos Campanhas para financiamento de projeto possibilitam o público a ajudar a subsidiar uma performance ao vivo de grande porte, esse contato mais direto com o público permite melhor entender de que maneira ele se vê representado ou regozijado pelo trabalho.

O povo brasileiro deve, sim, se orgulhar do reconhecimento e das exuberantes performances que Haydée construiu, que são uma riqueza cultural tremenda que podemos chamar de nossas. Não se deve, porém, deixar amargurar pelo fim de uma era – donde surgiram Márcia Haydée, Ana Botafogo ou Mercedes Baptista -, mas fomentar a expectativa de um futuro brilhante que reside no seio dessa tão conturbada sociedade brasileira, que para lidar com suas mazelas muito tem a escrever, muito tem a cantar, muito tem a filmar e muito tem a dançar.

3 Nota do Crítico 5 1

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