Mais um Lynch será mestre?
Por Bruno Mendes
Poucos segundos depois do término da sessão de Lucky (do diretor estreante John Carroll Lynch, que atuou em filmes como Zodíaco e Ilha do Medo), veio em mente uma das geniais frases de Nelson Rodrigues: “acho a velocidade um prazer de cretinos. Ainda conservo o deleite dos bondes que não chegam nunca”.
Ainda que, ao contrário dos escritos do anjo pornográfico, o filme dirigido pelo filho de David Lynch (o diretor/ator também representa um personagem em cena) não seja uma escarrada sarcástica contra o dinamismo dos novos tempos, a lentidão da passagem temporal permeia a narrativa. Por isso lembrei do Nelson.
Lucky é menos um olhar externo e opinativo sobre a velhice e mais o flagrante da própria velhice sobre o mundo e suas questões.
O andar lento de um cágado rumo à “moitinha” de alguma planta do deserto, a luz característica daquela região (ótima fotografia) e a calmaria flagrante de uma dessas cidades interioranas exageradamente pacatas, fazem parte da morada de Lucky (Harry Dean Stanton, falecido em Setembro de 2017). Desconfiado, impaciente e às turras com a maioria dos poucos conviveres daquele microcosmo (realmente ‘micro’), o ancião é uma pessoa sozinha, capaz de realizar diariamente diferentes séries de exercícios de yoga e poucos segundos depois fumar um cigarro atrás do outro.
A narrativa acompanha a rotina do protagonista com rigor cirúrgico e o que poderia se tornar enfadonho em razão das repetições, funciona como o maior mérito da obra de Lynch, ao passo que após poucos minutos de contato com as cenas, torna-se fácil criar apreço e adquirir maior curiosidade para conhecer aquela figura humana. E a partir dos flagrantes diários, o “sortudo” (vocês irão entender a razão do apelido) é logo identificado como o observador de si mesmo e de tudo ao redor.
É impossível deixar de ressaltar a admirável entrega de Stanton a um personagem aparentemente nada simpático e pouco relevador de suas reais intenções/opiniões nos mais distintos aspectos do convívio humano. Um livro de palavras cruzadas e um programa de TV, desses de perguntas e respostas, são as principais diversões e razões de interesse, embora desenvolva boa relação e releve um pouco mais sobre si para um atendente da lanchonete e a dona de um pequeno mercado.
O que será que esse senhor viveu no passado? Quem são seus parentes mais próximos? Já foi casado e já teve amores? Há medo e insegurança por trás destes silêncios e birras? São vastas as perguntas possíveis de se fazer ao velhinho. A obra sugere respostas para estas e outras questões por intermédio dos “não ditos”, evidentemente funcionais graças ao inspirado roteiro (de Drado Sumonja e Logan Sparks) e a interpretação de um ator que se despediu do mundo com brilho.
E por falar em inspiração, outro destaque é o fato de Lucky jamais ser descrito como um “idoso sábio por ter vivido e enfrentado tantas coisas ao longo de décadas”, ideia comumente associada às pessoas mais velhas e, parando para pensar, tão superficial e maniqueísta. O filme expõe que as incertezas e prováveis infantilidades também caracterizam os senhores de rugas e cabelos brancos.
Discretíssimo, mas sem deixar de ser revelador, ao pincelar as impressões de Lucky sobre algumas ‘novas tendências’ na sociedade, o roteiro provavelmente (digo provavelmente, pois a obra tem vastas “explicações” em suas minúcias) derrame tintas mais relevadoras sobre os “traços decisivos” do protagonista, no momento da conversa dele com o médico.
Vagaroso como um cágado em direção a algum pontinho no meio da grandiosidade desértica (ou em direção a lugar nenhum, vai saber!), Lucky é a voz, a caminhada, a respiração, as certezas, os receios e o oceano de dúvidas de um idoso na chamada “reta final”. “Agilidade narrativa” não cabe neste exemplar.
John Carroll Lynch inaugura sua carreira de diretor (espero que REALMENTE seja uma carreira) com esta produção independente de intenso vigor. A gloriosa harmonia entre um roteiro que investe na sugestão e a brilhante força das imagens moldam uma obra digna.
Lucky não busca ser revelador, mas abrir brecha para questionamentos. Lento sim, talvez não como “bondes que não chegam nunca”, mas com certeza será impossível não conservar o deleite por essa preciosidade ao longo de muito tempo.