Curta Paranagua 2024

Crítica: Legalize Já – Amizade Nunca Morre

Mantém o respeito até a última ponta

Por Fabricio Duque


A cada obra do novíssimo atual cinema nacional, o público consolida mais a ideia de que talento não está só diretamente ligado ao dinheiro. Estes filmes, fora da curva, empenham-se em fazer muito com pouco, potencializando uma das maiores qualidades do povo brasileiro, que é o jeitinho e a adaptação do que “se tem para hoje”.

“Legalize Já – Amizade Nunca Morre” é um deles e se firma como um exemplar de qualidade técnica, conjugando com controle absoluto forma e conteúdo. É um filme que se desenvolve pelo viés humanitário e não uma explícita e gratuita propaganda da maconha, este é apenas um elemento, uma característica intrínseca dominante que constrói uma integração na vida dessas personagens abordadas.

Também não é uma história sobre o Planet Hemp, grupo polêmico que se tornou sucesso por suas letras de apologia às drogas. Não. É sobre a amizade que nunca morre. Sobre o fortalecimento das relações humanas, que, inicialmente tão diferentes e à margem, conseguiram a incondicionalidade do carinho, ligados unicamente por afinidades musicais.

Dirigido por Johnny Araújo e Gustavo Bonafé (dupla que realizou “Chocante”), “Legalize Já – Amizade Nunca Morre, que foi exibido no Festival do Rio de 2017, na Première Brasil: Hors Concours, e só agora chega aos cinemas (após nove anos), é um filme sobre a liberdade do existir, da possibilidade de ser enquanto essência.

Skunk (Ícaro Silva, de “Elis”) é um jovem músico, revoltado com a opressão e o preconceito diários sofrido pelas comunidades de baixa renda, que busca expor sua insatisfação através da música. Ele não quer o “não sou eu” e um dia, ao fugir da polícia, ele esbarra em Marcelo (Renato Góes, ator pernambucano de “Canastra Suja”), um vendedor de camisas de bandas de heavy metal. O gosto pelo mesmo estilo musical os aproxima, assim como a habilidade de Marcelo em compor letras de forte cunho social e questionador. Impulsionado por Skunk, ele adentra o universo da música e, juntos, formam a banda Planet Hemp.

Nós espectadores somos transportados a uma nostalgia, por uma fotografia saturada ao desgaste, como a de um arquivo envelhecido. E a câmera próxima, quase personagem, abraça uma intimidade, estreitando nossas distâncias e humanizando uma possível diferença sobre o tema retratado. É uma viagem no tempo, uma importação de uma época naturalizada e mais realisticamente palpável. Há uma pulsão de vida. Um limite não mais duvidoso. Uma passionalidade catártica do acreditar que a vida pode oferecer mais que migalhas. De não “vender a alma”. De “não ser escravo”. De ir contra a um “sistema que coloca um contra o outro”.

“Legalize Já – Amizade Nunca Morre” é o começo. Um frescor de esperança. Um transpassar das dificuldades para encontrar o pote de ouro do sucesso. É sobre ter atitude (“que está no ombro” – “Da cabeça pro braço”). Dar a cara à tapa. Fazer a diferença quando nada mais existe. É perpetuar os desejos mais primitivos e não se entregar à morte ainda estando vivo (em um emprego que engessa o pensar, domesticando o próprio querer com a alheia e limitada massificação de uma ordem e progresso). É galgar à fama. De camelô (uma das atrizes é a mãe de Marcelo D2) aos palcos.

Tudo inevitavelmente cria a resistência, o medo e a hesitação. O novo assusta. Sair da zona de conforto, mesmo que na lama, é para os fortes. “Tenho coração, mas tenho dívida para pagar”, defende-se. É um cinema de propósito direto, cru e orgânico, contudo não é amador, tampouco inocente. Sua narrativa sabe exatamente em que lugar chegar, em qual chão caminha e o que precisa dosar para construir o equilíbrio com suas alfinetadas críticas ao ser economicamente desfavorecido, gerando “preconceitos com o negão” (que corre da polícia por conhecer a própria condição perante os outros – uma “ameaça”, “bandido”, “intruso”). Diz-se a verdade. De um “roqueiro” sobre o “Exalta Samba”. “A culpa é de quem?”, pergunta-se.

É também um filme questionador sobre o maniqueísmo, até porque não há lado certo e ou errado. Apenas seres sobreviventes em uma sociedade perdida que alimenta suas doenças-fofocas. “Legalize Já – Amizade Nunca Morre” também incomoda o comportamento retratado de um povo, com suas ofensas-crenças em picardias enraizadas (agressivamente sarcásticas, debochadas e não sutis), como por exemplo, o “Poodle: cachorro de veado” e ou o politicamente correto contra o aborto.

Uma das maestrias do filme (que se conduz por uma agilidade no melhor estilo videoclipe) é a química de seus atores, que se entregam naturalmente (não encenam e ou interpretam, eles são os papéis que encarnam – por meio de suas poesias coloquiais de popularidade brincante com as palavras). É também um filme de acasos, de solidariedades, de um incondicional altruísmo. De um argentino dono de bar (fã de Maradona) que fornece a base (o lugar de resistência destes invisíveis), o típico humor passivo agressivo dos hermanos (que entende os tempos e as angústias do existir) e o ócio criativo para que os textos possam ser musicados.

Skunk e Marcelo sobrevivem na cidade, cúmplices do próprio mundo escolhido. Eles trocam conhecimentos sobre músicas, expandem suas percepções e gostos. São amigos. Cuidam um do outro. Brincalhões. Com ou sem o “sangue amargo da América Latina: uma fórmula anti-lucidez”. São lutadores contra a “pobreza cultural” de massa de “ralar o rabo na boquinha da garrafa”. E a favor do movimento. De resolver desconfianças no rap. “Tem que colocar alma na música, a parada está dentro de você”, diz-se com um discurso inflamado sobre a “demo que gera o show que gera o dinheiro”, andando no trilho do bonde de Santa Tereza, a metáfora de todo e qualquer ser humano enquanto indivíduo social.

“Legalize Já – Amizade Nunca Morre” (uma das mais famosas músicas da banda) é sobre a família que encontraram. Que se encontra nas andanças da vida. Que não é a de sangue de um pai que resolve colocar um para fora de casa. Dançam conforme a música. Com ou sem “parada transcendental com uma paradinha mais gospel”. Entre adequações, sacrifícios, viagem ao Paraguai, sombras e imagéticos quadros etéreos, o filme é sobre “legalizar toda a forma de arte”. “A música pode fazer isso”, filosofa-se.

É um filme que emociona sem gatilhos comuns e clichês sentimentais. Com cenas reais dos primeiros shows em 1995 da banda que “mais foi para cadeia”. A emoção é natural. É a transgressão da vida pela arte. E que nos mostra que a vida pode ser mais que a preocupação com a vida do outro.

4 Nota do Crítico 5 1

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