Crítica: A Forma da Água

A Maestria de Uma Forma

Por Fabricio Duque


“A Forma da Água”, novo filme do mexicano Guilhermo Del Toro, que venceu o Leão de Ouro no Festival de Veneza 2017, e que abre a décima nona edição Festival do Rio, corrobora a característica marcante de seu diretor que é o conto de fadas pela estrutura do realismo fantástico. Toda ambiência ‘mise-en-scene’ é construída pela fábula, pela magia da esperança, pelo possibilidade de final feliz aos seres “aberrações” solitários.

A narrativa conduz seu espectador a um universo surreal, porém possível. Físico, palpável, sinestésico e que transcende o lúdico. Nós sentimos as faltas, quereres e fugas de suas personagens, que se escondem na alienação fantasiosa de um mundo belo dos musicais americanos, tudo como auto-proteção da crueldade e hostilidade de uma sociedade que alimenta racismo, machismo, sensação de poder e preconceito enraizados a “favor” dos valores “família de bem”.

“A Forma da Água” é uma metáfora do nosso tempo, que não entende as diferenças e “criaturas” mutantes. Que preferem massificar opiniões públicas dos outros. Que preferem o nazismo das formas iguais e padronizadas. Que repetem crenças em histórias bíblicas sem conhecer a forma concreta de Deus. É um filme sobre sobreviver na desesperança. Do afogamento diário. Nas obrigações ininteligíveis.

Assim como o “Extra-Terrestre” e ou “Gremlins” e ou “O Bom Gigante amigo”, todos de Steven Spielberg, provavelmente uma referência mútua aos dois cineastas, a “criatura” verde, “primitiva”, “selvagem” e aquática daqui está acuada e busca a integração social com a faxineira que ouve, mas não fala, uma “princesa sem voz”. E ou voltar para casa.

Com uma narração que pontua a trama (que tem cadência aos moldes de “O Fabuloso Destino de Amélie Poulain”, de Jean-Pierre Jeunet, com música temática dos filmes de Federico Fellini – trilha-sonora que define a personalidade de cada um deles – como a música de suspense quando o vilão entra em cena – ou quando toca “Babalu”), suas personagens, tipos típicos e idiossincráticos, são desenhadas por suas micro-ações cotidianas em suas rotinas detalhistas (da comida, do banho de banheira, da masturbação, da ida ao trabalho e até do mesmo filme) e por residirem na parte superior de um cinema que em dia bom tem quatro pagantes. O roteiro nos imerge na subterrâneo e no subaquático. Nesta tela grande, nós somos agraciados com a cinefilia nostálgica do sapateado do Sr. Bojangles e ou Carmem Miranda.

“A Forma da Água” é mais que um “Okja”, de Joon-Ho Bong, é sobre experimentos físicos, orgânicos, viscerais, violentos e de tortura. É sobre a timidez de se expôr ao mundo. É estender o flerte com medo de uma resposta negativa. É sobre solidão, carência e corpos fechados (só abertos aos mais sensíveis). É sobre mudar o canal do “terror” dos protestos negros e sintonizar na alienação da era sonhadora dos musicais. É sobre núcleos que suavizam com humor mais paspalhão e direto, com a atriz Octavia Spencer. É sobre não perder e não demonstrar “fraqueza” (lavando as mãos apenas uma vez – antes ou depois de urinar). “O mundo é pecaminoso”, diz-se.

Década de 60. 1962. Época da Guerra Fria. Em meio aos grandes conflitos políticos e bélicos e as grandes transformações sociais ocorridas nos Estados Unidos, Elisa (Sally Hawkins), zeladora em um laboratório experimental secreto do governo, conhece e se afeiçoa a uma criatura fantástica mantida presa no local. Para elaborar um arriscado plano de fuga ela recorre a um vizinho (Richard Jenkins) e à colega de trabalho Zelda (Octavia Spencer). Os incompletos atraem-se. É sobre desajustados fora do tempo. “Ou eu nasci muito novo ou muito velho para esta vida”.

Elisa não se intimida. Não se assusta com a criatura de “um circo de horrores”. Pelo contrário, cria fascínio e identificação. O longa-metragem automaticamente faz com que nós sejamos remetidos aos trabalhos ultra-realistas da artista plástica australiana Patricia Piccinini e sua exposição “Comciência”, que aconteceu no CCBB do Rio de Janeiro. Ela lida com nossa reação de estranhamento, ao mesmo tempo incômodo e sedutor, desencadeando uma repulsa visual diante de esquisitas criaturas fantásticas e imaginárias, deformadas e ou mutantes. E ao confrontar, consegue aflorar uma empatia ao humanizar estes seres, desestruturando a opinião já segmentada da “normalidade”. “O futuro é verde”, diz-se.

Os ovos cozidos, as citações bíblicas, “ninguém gosta de Baltimore”, o silêncio “sexy”, os russos competidores, os povos “primitivos da Amazônia da “América do Sul” (em que os americanos querem ir e não voltar), tudo desemboca na incomunicação da espécie humana. Se referenciarmos “A Chegada”, de Denis Villeneuve, e ou em “Contatos Imediatos de Terceiro Grau”, de Steven Spielberg, então entenderemos que o segredo de um resultado produtivo está na tolerância. Em ouvir. E ser respeitoso por “caras interessantes”. Não adianta só ler o livro “bíblia” “The Power of Positive Thinking”, de Norman Vincent Peale, lançado em 1952. A “criatura Cão espacial” é inteligente, quer apenas se comunicar, entende as emoções. “Soviéticos também entendem e nós os matamos”, rebate-se.

“A Forma da Água” tem câmera microscópica quando mostra gotas d’água que se formam em um balé epifania. “A vida é a ruína dos nossos planos”, descamba-se ao pessimismo. À resignação do sofrimento e não mais à resiliência. “Não se ganha nada com o que já se expirou”. É a poesia do encontro. De se permitir sair do óbvio. De aceitar que a beleza está dentro. E que por fora pode existir a “bela e a fera”, ambos conectados pelo mutismo e que quando sonham tornam-se monocrático, sonhando em preto-e-branco, dançando livremente e sendo aceitos na magia de seus quereres.


Guillermo del Toro nasceu em Guadalajara, México, em 1964. Estudou no Centro de Investigación y Estudios Cinematográficos. Com O labirinto do fauno (2006) participou da competição de Cannes e foi indicado ao Oscar de melhor roteiro original. Dirigiu ainda Cronos (1993), Mutação (1997), A espinha do diabo (2001), Blade II – O caçador de vampiros (2002), Hellboy (2004), Hellboy II: O exército dourado (2008), Círculo de fogo (2013) e A colina escarlate (2015).

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