Entre nostalgia e pinceladas críticas
Por Bruno Mendes
No auge de greve de caminhoneiros ou mesmo quando notícias rotineiras expõe a precariedade das estradas brasileiras, um questionamento pertinente é colocado em pauta: por que não investir no transporte ferroviário? O documentário “Estrada de Sonhos” (dirigido por Pedro Von Krugüer) não deixa instigar reflexões neste nível e tece críticas discretas, porém, relevantes, ao sistema político/econômico, que prioriza novas construções e o alargamento de estradas já existentes por razões puramente mercadológicas. Em contrapartida, a obra não se escora em viés panfletário e aprofunda o olhar em direção ao espaço que as estradas de ferro e trens ocupam na memória afetiva de homens e mulher de todas as idades.
E não fica por aí: de modo competente, Pedro Von Krugüer confere atenção à certas nuances do modo de vida da população que vive nas proximidades das ferrovias e mostra de forma discreta e pontual os trens que circulam nas curtas linhas contemporâneas.
Aliás, analisando esta rota escolhida por Krugüer , é viável concluir que Estrada de Sonhos além de ser um filme sobre um meio de transporte que perdeu espaço e virou “peça folclórica” frente ao progresso à brasileira, também revela um olhar sobre as condições humanas de grupos populacionais igualmente “esquecidos” no bojo civilizatório. Se as câmeras do doc flagram o matagal grande e descuidado crescendo sobre os trilhos de outrora, os aparelhos cinematográficos também evidenciam casebres arruinados pela falta de recurso e moradores que batalham todo dia para sustentar suas condições humildes. Nesse sentido observa-se o flagrante da falta de algo. Faltam trilhos para serem percorridos em nação tão grande e economicamente dinâmica, faltam condições para trabalhadores melhorarem de qualidade de vida.
Por outro lado a impressão dos realizadores não é apenas negativa. Flagra-se os bons instantes pessoais, exemplificados em piadas e conversas felizes, das viagens ainda realizadas entre um município e outro. Registra-se o fato de as viagens em locomotivas terem inspirado pintores impressionistas,afinal, foi a partir da perspectiva de passageiro, que artistas criaram pinturas que representavam regiões montanhosas e pequenos núcleos populacionais do início do século. E há em tela relatos românticos de antigos e novos trabalhadores responsáveis pela condução dos trens. Inescapável nostalgia!
Entre diferentes registros, o olhar para o passado no doc ganha força com o encaixe de trechos de obras clássicas dos primórdios da cinematografia, como do brasileiro ‘Limite’ de Mário Peixoto (1930) e o embrionário A Chegada de Um Trem Na Estação dos irmãos Lumiére (1895). Por intermédio dessa escolha, Estrada de Sonhos não deixa de homenagear um cinema hoje reverenciado basicamente por guetos de cinéfilos, pesquisadores e realizadores. Há de se supor que não há intenções de exercício metalinguístico e as cenas ali expostas validam-se como documentos históricos, de todo modo, é gratificante que uma obra sobre a memória, direcione a lente para essas preciosidades da sétima arte.
Em relação aos trens contemporâneos, são apresentadas imagens da imponente estação da Luz em São Paulo e o relato de passageiros que utilizam o transporte de massa todos os dias. É claro que são expostas as reclamações sobre superlotação, consequência direta do nosso histórico problema de infraestrutura urbana, mas Von Krugüer é prudente ao expor otimismo e jogar a favor da estrutura que ali está, quando um dos entrevistados afirma que por intermédio do transporte pôde conhecer a cidade na íntegra. Não há falta de assertividade crítica ou inocência frente às evidentes deformações, mas a conclusão de que rotinas tornam-se muito mais fáceis se as composições férreas tiverem mais e mais destinos.
Não é surpresa que hoje são pouquíssimas as linhas de trem em funcionamento no Brasil. Seja o de carga ou de passageiros, o transporte sobre trilhos é pequeno e escasso. Pela informação passada por um dos entrevistados, “ um trem tira mais de 200 caminhões de circulação”. Outra voz não embasada tecnicamente, mas assertiva diz: “se todo mundo tivesse um carro a cidade iria parar”.
Sem dúvidas, as pinceladas críticas ecoam com mais força naqueles que utilizam transportes de massa e sofrem com o abrangente quadro de problemas das estruturas atuais. Mas olhamos com atenção quando Estrada de Sonhos também saúda a enorme estrutura metálica que faz o chão tremer quando se aproxima da estação e é considerada uma “entidade”.
Nada é profundo. O filme é correto, mas simples. Há lamento, saudades, esperanças. É sobre trens, mas sobre brasileiros do passado e do presente.