O viver a vida até a última lembrança
Por Fabricio Duque
Em uma das pré-estreias, parte da sessão Viver Mais do Itaú, que apresenta ao público da “melhor idade” filmes com temática sênior, “Ella e John” causou vetustez ao abordar a velhice, espontaneidade em traduzir idiossincrasias e polêmica ao fornecer o livre arbítrio em tomar a decisão à eutanásia de escolher o fim. Alguns compreenderam o ato final como uma forma solidária, protetora, altruísta, realista, libertadora e de “alívio aos filhos”. Outros já se incomodaram por causa da distância aos preceitos religiosos de preservar a vida, ainda que em sofrimento.
O filme é uma jornada de vivenciar os últimos são momentos antes de partir, à moda de “Easy Rider – Sem Destino”, de Dennis Hopper (que incluem uma explícita referência ao filme quando Ella anda de moto). É um Road Movie que atravessa os Estados Unidos, resgatando lembranças (que são mais e mais perpetuadas em mentes vulneráveis), e revisitando lugares que marcaram as existências de Ella e John, casal de idosos que escolheu não perder a energia e as esperanças em uma sedada e depressiva cama de hospital.
“Ella e John”, dirigido pelo italiano Paolo Virzì (de “Capital Humano”, “A Primeira Coisa Bela”), constrói-se pela ambiência orgânica, “decrépito”, de “aparência distinta”, de fluídos vitais. É a aventura de situações ao acaso, como se refizessem novos passos como se fossem novas pessoas em novos corpos antigos. É o conflito contrastante de estar com uma idade em um corpo em limitação e uma mente ativa. “Todos os velhos são iguais”, diz-se.
A narrativa, acoplada com o elemento musical (que simboliza épocas, estágios de humor, lembranças e geografias – de Bob Dylan a Janis Joplin), opta pela romanceada estrutura de novela (com seus cortes rápidos e elipses continuadas de um teatral tempo real), muito para ser uma versão formulada e palatável com o objetivo de suavizar com sacadas espirituosas a complexidade da iminência da morte, fatalidade intrínseca a todo e qualquer ser humano.
Septuagenários, o casal de aposentados Ella (a atriz Helen Mirren) e John (o ator Donald Sutherland) decide fazer uma última viagem pelo país, de carro, um motorhome chamado de “Caça-Lazer” (“The Leisure Seeker”). Desafiando limites e receios, os dois embarcam em uma aventura transformadora que sai de Boston e tem como destino a antiga casa de Ernest Hemingway, na Flórida. Deixando os filhos para trás com suas vidas e preocupações.
“Ella e John”, baseado no livro homônimo de Michael Zadoorian, é o típico gênero de filme de ator, neste caso da dupla veterana do cinema, tudo porque permite que os dois potencializem talentos por meio de monólogos encenados, como um cúmplice e teatro cômico (por exemplo, o “peido” escondido) da vida privada (“Exagerou no perfume”, diz a mulher ao marido), conduzido pelo ingenuidade genuína da pureza das crianças. Enquanto Ella reverbera verborragia, John dirige urgente e de forma imprudente.
Eles vão se tornando crianças. Mais e mais. Impulsivos e mais abusados. Tudo porque já viveram plenamente vidas “acumuladas entre promessas não cumpridas e anseios apocalípticos”, disse o escritor Daniel Galera em seu mais recente livro “Meia Noite e Vinte”. A viagem é o sopro, é o acerto de contas com o tempo e com as obrigadas procrastinações (seja por preguiça, ócio ou impossibilidade mesmo). Nenhum deles saíra incólume. Na verdade, permanecerão na fantasia da projeção, postergando a realidade para depois. Ou nunca.
O longa-metragem é sobre este casal. É uma ode ao amor, que ama “viajar” no tempo. Ella conta toda a história da vida deles ao marido para cada vez perpetuar e firmar lembranças. John sofre da doença de Alzheimer e pede a seu grande amor que nunca o deixe esquecer dela. Ele a respeite e aceita suas “dominações” e os horários dos remédios. É a mútua confiança. O princípio mais básico e primitivo do amar, que entende a “economia de palavra com banalidade” (“os silêncios nunca embaraçados”), o ciúme (este até mesmo lisonjeiro da “aluna” pelo “professor mais inspirador”), as implicâncias, o “perder o juízo” e o politicamente incorreto de seus comportamentos, como o sentir vontade do sexo na terceira idade. “Está dentro”, ele diz. “Está dentro sempre”, ela responde.
A viagem representa o dever de “ampliar horizontes intelectuais”. Uma terapia de resolver passados. Então eles “fogem” ao mundo próprio, particular e único deles. Sem julgamentos. Loucura? Uma das questões críticas do filme é mostrar aos outros (mais jovens) que não se deve “enterrar” os idosos antes de falecer. Pelo achismo de que são vulneráveis e incapazes (vide o filme brasileiro “A Despedida”, de Marcelo Galvão), há uma limitação de ir e vir. E pela lógica toda poda gera a desistência que gera o desânimo que gera a resignação que gera o limite que gera a morte. A solução é deixá-los viver. Até porque eram sozinhos antes de toda paparicação atual.
Eles acampam e enxergam intempéries do caminho como “incríveis” experiências adquiridas. Cantam e desferem elucubrações sobre a morte “lá em cima”. E fazem de outros lugares novos lares, esbaldando e sobrevivendo como podem. Não são “inválidos”. Trocam remédios e aprendem a silenciá-los com ou sem Diazepam. É inevitável não inferirmos a “Antes de Partir”, de Rob Reiner, a “Gerontofilia”, de Bruce LaBruce, e a “O Ancião que fugiu pela janela e desapareceu”, de Felix Herngren (baseado no livro do escritor sueco Jonas Jonasson), com um que de “Forrest Gump: O Contador de Histórias”, de Robert Zemeckis.
Eles ainda se amam e se fascinam com a beleza um do outro. E sempre “ficam felizes quando voltam”, nem que seja em intervalo de minutos de separação. Mas John está esquecendo e Ella está com câncer (e “cansada de lembrar tudo pelos dois”). Casamento é isso mesmo. Na saúde e na doença. Na alegria e na tristeza. Ora com sexo, ora com xixi na cama. Aproveitam antes do fim chegar. Com slides de fotos, falsos sustos, protestos contra Donald Trump e outros ouvintes.
“Ella e John” para acontecer precisa lidar com os recorrentes gatilhos comuns, principalmente das consequências das situações do acaso, nivelando com um que mais pastelão e desengonçado. Faz parte o simplificar ao máximo a complexidade do tema. Caso quisesse ser diferente, então o melhor exemplo é o filme “Amor”, de Michael Haneke. “Derrotados, mas não destruídos”, diz-se. Talvez pela “vestimenta” de serem idosos, os dois perdem as “papas na língua”. Segredos são confessados. Reações de “búfalo ferido” são respondidas com alterações passionais.