Curta Paranagua 2024

Crítica: Eduardo Galeano Vagamundo

Sessão mediúnica coletiva através da arte sentida

Por Filippo Pitanga

Durante o Festival Cine Ceará 2018


“Eduardo Galeano Vagamundo” de Felipe Nepomuceno não é uma proposta simples como conceito aplicado de filme. Um documentário sobre o saudoso personagem-título, o escritor de sucesso que assinou obras-primas como As Veias Abertas da América Latina” e “O Livro dos Abraços”, e cujo roteiro parte da premissa do primeiro capítulo da gênese da série “Sangue Latino” do Canal Brasil, onde ele foi entrevistado por parte da mesma equipe do presente filme, poderia resvalar facilmente numa extensão da série para a telona. Mas Felipe Nepomuceno possuía uma relação intrínseca bastante pessoal e espiritual com Eduardo Galeano durante a vida deste. E, logo um escritor que possui uma vida conectada com o espírito de toda a América Latina, por anos de luta contra a Ditadura e a repressão em seus escritos, encontrou em Felipe alguém cuja família e história pessoal também possui grande ligação com vários países da América Latina, de modo a que não pudessem estar em melhor companhia para tentar alcançar algo em conjunto nas telonas.

Com o falecimento de Galeano e as entrevistas que já possuía graças à série do Canal Brasil, ora ampliada de vasto material extra, para contar com o escritor em seu filme na própria essência do que representa, Felipe acrescentou ao documentário imagens poéticas que materializassem textos e palavras dos livros do mestre, bem como convocou inúmeros convidados ilustres para fazer leituras destes mesmos textos: de nomes brasileiros a internacionais, de João Miguel em trecho em homenagem de Galeano ao Bispo do Rosário, ao ídolo argentino Ricardo Darín. Tudo em preto e branco belissimamente fotografado, com raros toques de vermelho apenas para homenagear a assinatuta da série “Sangue Latino” do Canal Brasil, onde o fotógrafo Walter Carvalho acrescentou este toque a partir da terceira temporada, seguimos numa sessão que toca muito mais ao espírito do que ao olho nu, pois a composição evoca uma transcendência entre a palavra enunciada e a imagem vinculada do que propriamente uma resultante das duas em separado.

Não se tem interesse aqui de se fazer uma biografia e muito menos uma bibliografia definitiva sobre o escritor, e sim aludir ao que ele produziu como prova do que viveu e sentiu, do que interligou e batalhou, de todos os lugares que passou e conheceu, de modo a evocar quase de forma mediúnica uma presença em nossas almas. Mesmo para quem não o conhecesse — o que aí sim pode servir como enorme estímulo de introdução a se familiarizar melhor com o universo do autor e querer mergulhar por mais. Informações da vida dele são dadas apenas de forma diegética e no que seja necessário para contextualizar o que se é lido na tela ou sentido na plateia. Os nomes que fazem tal leitura são dos mais variados possíveis, de atores a artistas plásticos ou mesmo escritores como ele.

Aliás, vale mencionar que o campo estudado de obras e vivências é tão maior do que o selecionado pela montagem intuitiva e respeitosa, de modo a tentar fazer um filme coeso em sua própria proposta e que não transbordasse na pretensão, que muita coisa ficou de fora — ou porque não se encaixaria ou porque não tinha o grau devido de pertencimento ao quadro geral já composto. O próprio cineasta confessa em entrevista que as motivações de escolhas por trás de algumas cenas se deram de forma mais para uma quase paranormalidade em diálogo com o que consideraria que o saudoso escritor esperaria dele, ou do que sua impressão da relação com o mestre lhe intuiria, do que necessariamente por valores externos a isso. Há de exemplo quantos nomes consagrados ficaram de fora, como Chico Buarque e Milton Hatoum, mesmo com registros já filmados e trabalhados na equalização da imagem. Ou mesmo cenas extras dos que entraram, como uma canalização de João Miguel do Bispo do Rosário ao redor da fogueira que teve de ser cortada do longa-metragem pelo tamanho da cena, o que não tornaria seu impacto menor.

Nepomuceno escolheu algumas das cenas que entraram na versão final muito mais por sinais ou simbolismos de que elas se integravam umas às outras ou mesmo ao núcleo do que queria exprimir sobre o autor — até mesmo nas histórias de bastidores destas cenas, onde sentiu a presença de Galeano ao filmá-las — do que pelos entrevistados em si. E há tanto material de sobra no extracampo igualmente valoroso que daria para Felipe fazer uma série para não desperdiçar — e talvez ele o faça.

Pode parecer hermético para alguns, ou mesmo uma ótima introdução à leitura de um grande autor, que merece reconhecimento nos méritos de uma América Latina sofrida e subestimada que jamais costuma ser tão unificada como em seus livros, mas cumpre com o papel que tantas biografias a se pretenderem “completas” e que não capturam nem metade do que representa seu biografado, nem aquilo que a pessoa possa ter produzido. Muitas biografias se prendem mais nos acontecimentos importantes, polêmicos ou controversos da vida dessas pessoas do que tentam cruzar referências em como isto se converteu no resultado que tornou este mesmo biografado reconhecido. E nisto Felipe prima por exceder expectativas.

4 Nota do Crítico 5 1

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