Metalinguagem que mergulha nas vísceras humanas
Por Fabricio Duque
Em “O Comediante Desencarnado”, de “Louis Jouvet, sobre suas reflexões de um ator itinerante, a palavra de ordem é vocação. De ator. A primeira que se traz no espírito. “Que mania, que estranha anomalia, que desregramento me reduziu a essa condição de querer e imitar? Qual estranho gosto de inventar, de provocar? É uma desordem humana organizada, um mal entendido fraternal. Pode-se hesitar antes de colocar seu coração nas mãos do público?”, diz seu “fantasma ” ator.
O documentário “Como Você Me Vê?”, do diretor, estreante em um longa-metragem documentário Felipe Bond (do seriados “Os Varandistas” – e ator da novela “Malhação”, “A Regra do Jogo”, do filme “A Novela das Oito”), é exatamente sobre isso. Sobre essa pulsação latente descontínua. Sobre essa pulsão desenfreada que rasga a alma, que dilacera a realidade e que constrói uma ficção “mentirosa” pululada de verdades.
Aqui, a narrativa segue o classicismo do gênero. Mas esta escolha não é de maneira nenhuma errônea. Pelo contrário, o processo humaniza o diálogo que se apresenta como espirituoso, livre, passional, inquietante, perspicaz, inteligente, aprofundado e libertador, tudo pela sua estrutura orgânica de permitir os bastidores, até mesmo o suor que jorra por causa da quente luz “solar” do refletor.
O universo do ator é desmistificado por sua abordagem, ainda que desconcerte toda a própria criação. Recentemente, o mestre-dramaturgo Domingos Oliveira realizou o documentário “Os Oito Magníficos”, sobre atores sendo eles mesmos. É possível? Como podemos mensurar realmente a essência existencialista de um ser que vive sua vida sendo feliz em viver sendo a vida do outro?
Toda essa epifania pós exibição que causa disritmia terapêutica no espectador é o cerne de “Como Você Me Vê?”. Nós somos aviltados e estimulados a “redefinir e ressignificar” nossos olhares. Há muito tempo, um documentário, sem a pretensão ilusória de nos sugestionar, e pela simplicidade orquestrada-ritmada do texto como elemento bruto não lapidado, não causa uma impulsiva explosão e uma força desordenada que nos faz escrever sem filtros e sem a padronização mental do engessamento prognóstico.
É um documentário sinestésico. Nós sentimos as necessidades do ator. E do porquê da escolha dessa profissão “insegura”, sem “plano de carreira”. Que trabalha com a “incerteza”, com as dúvidas. É um misto de admiração, medo e incompreensão. Por que cargas d’água um indivíduo opta pela instabilidade de se descortinar e expor suas entranhas? “Eles só veem, eles só julgam por eles mesmos, pelos efeitos que causam e o sucesso que recebem deles. Eles são cegos e surdos”, disse Louis Jouvet.
Sim, talvez este preâmbulo esteja visceral demais. Mas não há outra forma menos contida de se começar essa crítica. Até porque a própria ambiência do documentário é puída, é para fora e não busca a glamourização do conteúdo. “Atuar é combater”, diz-se com catarse transcendental. “Como Você Me Vê?” intercala falas, processos de criação e performances encenadas, costurada pela a de Julião Adrião e seu espetáculo “A Descoberta das Américas”, com pinceladas destaques a “Homero” por Leticia Sabatella.
Com entrevistas dos diretores Zé Celso e Amir Haddad, e dos atores Renato Livera, Gracindo Junior e filhos, Stenio Garcia, Giordanna Forte, Babu Santana, Marilene Saade, Pedro Coelho, Osmar Prado, Cassia Kiss, Rodrigo Randolfo, Erom Cordeiro, Nanda Costa, Matheus Nachtergaele, Patrick Sampaio, Silvio Guindane, Carlos Gandra, Pedro Coelho, Bella Camera, Dida Camero, Tonico Pereira, Marilia Coelho e Luciano Vidigal, que nunca questionam seus ofícios intrínsecos de “vestir uma máscara” (“tudo pelo aplauso do público”), o filme é um show de definições não de efeito sobre esta arte interpretativa, “dramática-educativa”, ainda considerada “puta”. “Ir ao teatro é ir à vida sem se comprometer”, diz-se.
“Como Você Me Vê?” questiona “se atores são um produto”. “O que um ator tem para vender é a si mesmo”, diz-se. A arte de um ator é “olhar para si”, passando pelos “bons anseios dos jovens” para chegar à “consciência”. É aceitar que o “sistema produz e vende” e que “não se deve vender o que a gente tem de melhor para dar”. É contra os atores “gados” que só querem “ganhar dinheiro”. A favor dos “profetas” e dos que “faz arte que te ensina a viver”. É sobre a responsabilidade, o compromisso, “o voto”, a “devoção”. Sobre a “maior conquista”. Sobre a “cidade dormir” e eles “trabalharem”. Sempre estão na contra mão. Na vanguarda do existir.
É sobre histórias de seus começos, sobre “entre safras”, sobre estímulos, sobre “não ser uma piada”. Sobre “brilhos fugazes”. Sobre a desnecessidade da Lei Rouanet. É sobre “fazer a parte chata para viver a parte boa”. Sobre criar as artimanhas. Sobre dirigir um táxi para lutar pelo sonho. Sobre levar “dez anos para o começo da estabilidade”. Sobre não ser mais uma “profissão de rico” do ator “operário”. É sobre sair da zona de conforto. “Perrengue faz parte”, ensina-se.
É ser a “esponja do mundo”. Um “aventureiro”. Ajudado pelo Sesc salvador. É conviver com os dois lados conflituosos da moeda: a glamourização das celebridades versus a autoridade da criação. “Tudo é política”, diz-se. Tudo é social. É mergulhar nas “vísceras humanas”. É sobre passear pela “obra aberta” da novela e ou pelo significado do Oscar (“um meio para aparecer”, disse Stenio Garcia). É uma profissão “para se comunicar”. Para contar histórias. De auto-conhecimento. “Ame a arte em você e não você na arte”, diz-se.
“Como Você Me Vê?” é sobre aceitar que “os pés são sempre de barro”. Que a vaidade é necessária mas precisa ser controlada e vigiada. Atuar é uma prece, até mesmo a um ateu. É estar em comunhão. É buscar. É extrapolar a realidade. É fazer a diferença. Concluindo, é um filme único, despretensioso, que foca exclusivamente em desenvolver plenamente seu tema. Com domínio. Calma. E precisão da edição que nos encanta, nos ensina, nos coloca contra a parede e nos estimula a “dar murro para entrar na porta”. Então, como nós vemos os atores a partir de agora? De que só são atores se aparecem nas novelas?