O Apocalipse Segundo Arthur Tuoto
Por Fabricio Duque
“Carnívora”, que integra a mostra competitiva da VIII Semana dos Realizadores, representa mais um experimento cinematográfico do cineasta vídeo artístico Arthur Tuoto (de “Aquilo que Fazemos Com as Nossas Desgraças”), em constante trânsito entre o cinema e as artes visuais, e que potencializa estética cinéfila, autora e conceitual de seu diretor, que também escreve críticas para a Revista Digital Cinética. Aqui, a obra, de ficção científica por transmutar etérea e livremente imagens, sons (vazados e mesclados à moda da nova cinematografia de Jean-Luc Godard), ruídos e diálogos, busca referências vanguardistas aos cineastas Andy Warhol e a Derek Jarman (por “Blue”), e menos explicitamente, leves na inferência ao filme “Homens, Mulheres e Filhos”, de Jason Reitman.
“Carnívora” não busca ser palatável a seu público, não busca se adequar a massa e não busca os gatilhos comuns ilusórios. E sua maestria está exatamente nisso: em respeitar a inteligência de que assiste, transmitindo fielmente o querer intrínseco das ideias. O que nós vemos (e aglutinamos no olhar) é a representação de um apocalipse iminente, por fragmentos-instantes “footages” flashes cotidianos, antigos, caseiros, familiares, amadores, fantasmagóricos, ectoplasmados, envelhecidos e deteriorados de filmes-registros (quase em fotografia em negativo) amadores de famílias comuns e de acontecimentos marcantes de nossa história mundana (muitos por documentos jornalísticos americanos).
Estas imagens observadas por uma narradora sobrevivente (“após uma guerra por bombas atômicas” “sobreviveu para representar a humanidade e contar a história”), que busca explicar e traduzir características inerentes dos seres humanos. Após ser encontrada por seres alienígenas, esta sobrevivente de um episódio misterioso que dizimou parte desta raça humana tenta compreender os fatos que levaram o planeta Terra a esse trágico destino. Seria este ser misterioso um Deus Mulher Extra-Terrestre? (porque “mesmo assim, gosta das pessoas”, estas que “na cama me pedem desculpas por suas ficções”). Será que é porque apenas são memórias fílmicas? Será que é por perpetuar a máxima de que quando alguém morre, a maldade desaparece?
A sobrevivente questiona as tragédias que a levaram a ficar eternamente solitária. “Por que não impediram este futuro medroso com armas terríveis e com peças de suas máquinas de entretenimento?”. Este ser também pode ser a representação interativa projetada de nossa consciência, escondida em nossas escuridão, egoísmo e ilusão massificada diariamente. Mostra-se consequências e destruições da guerra, suas mortes e a voz em verborragia pensativa monólogo que “sente pena da humanidade porque eles temem”, porque são selvagens “carnívoros não civilizados”.
Formado inteiramente por imagens de arquivo de domínio público, inclusive a voz narrada (em inglês britânico) e gravada (por Tabithat), o filme é uma adaptação do conto homônimo de ficção científica “The Carnivore”, de Katherine MacLean.
Concluindo, um filme experiência que “bagunça” a zona de conforto do espectador e que não faz a menor questão em “devolvê-lo” à ficção da própria vida. Soa como um capítulo de um filme de Lars Von Trier, por destruir alienações ainda intactas que lutamos muito para preservar, na melhor referência ao livro “Fahrenheit 451”, de Ray Bradbury. Recomendado.
Entrevista com o Realizador Arthur Tuoto
(foto: arquivo digital do próprio diretor)
Incrível o filme. Todo feito por fragmentos de imagens e sons de domínio público. Como foi o processo de criação?
Como no meu longa anterior (“Aquilo que Fazemos com Nossas Desgraças”) eu me dei uma liberdade muito grande, neste eu me propus a fazer um filme inteiro com material em domínio público. Uma pouco como uma espécie de desafio criativo e um pouco também pra mostrar que isso é possível, que é uma articulação que o nosso tempo permite. Nas minhas pesquisas por material eu sempre me deparava com o Prelinger Archives, que é uma coleção de filmes caseiros em domínio público, e sempre tive vontade de usar aquelas imagens, até porque muitas delas tem um poder sensorial implícito (filme velado, sombras, abstrações) que casariam bem com uma experiência cinematográfica. Com isso em mente, eu fui atrás de uma base sonora, de alguma coisa que ressignificasse aquelas imagens. Busquei filmes, diálogos, discursos, até que me deparei com o audiobook do conto da Katherine MacLean, que me pareceu mais do que ideal.
Como você vê a raça humana? Você é o cineasta sobrevivente?
Eu vejo a raça humana de várias maneiras. E de qualquer forma, acho que qualquer visão será passiva de erros e vícios culturais. Por isso não consigo conceber um diagnóstico universal nesse sentido. Não sei se sou um cineasta sobrevivente. Sou um tipo de cineasta, um cineasta que, pelo menos por enquanto, se articula da forma que consegue, com imagens alheias, da forma que me parece mais possível, mas que, com certeza, não será a única.
Como foi chegar ao conto de Katherine MacLean e escolher as imagens e os sons?
Gosto muito de obras de fantasia e ficção científica que conseguem, a partir de um incidente dramático, se debruçar sobre reflexões universais, como é o caso de “The Carnivore”. Naturalmente fui atrás desse tipo de narrativa para casar com as imagens que eu já tinha. A ideia principal era passar uma sensação de registro, de mediateca daquela civilização extinta. E acho que o conto, com esse teor apocalíptico resignado, foi ideal nesse sentido.
É incrível como viajamos e sentimos o filme? Como despertar esse lado sensorial?
Apesar do filme ter esse elemento narrativo e até linear mais evidente, toda a construção sensorial de fato é o aspecto mais importante da obra. Isso se dá muito através de uma articulação entre som e imagem, uma articulação que tende a criar um terceiro significado, que ignora um pouco a natureza original da imagem e intui uma nova possibilidade, uma dimensão sensitiva que precisa ser conservada durante toda a duração do filme.
Qual a importância da Semana dos Realizadores?
Visto a grande quantidade de filmes e propostas audiovisuais contemporâneas no nosso país, acho que a Semana tem uma função essencial em mapear esse tipo de trabalho, em evidenciar obras que talvez não receberiam tanta atenção em outros festivais. Gosto muito de festivais que, por natureza, já nascem com esse perfil de inventividade, que buscam sempre renovar a sua seleção e desafiar seu espectador.
O que é cinema para você?
Tenho uma relação um pouco obsessiva com cinema. Assisto filmes diariamente, escrevo sobre cinema. Acho que mais do que um modo de expressão, acaba se transformando em um objeto de estudo mesmo. E isso se reflete nos meus filmes tanto em relação a essa busca mais elementar pelo som e pela imagem, como uma apropriação mais direta. Meu mais recente longa (“Não Me Fale Sobre Recomeços”) é uma espécie de travelogue pela imagem e, consequentemente, pelo cinema, que acaba lançando mão de vários gêneros e possibilidades, de filmes distintos a texturas e discursos.