A Revisitação de Uma Máscara
Por Fabricio Duque
Mesmo aqueles que viveram intensamente os anos oitenta ainda hoje não conseguem traduzi-lo, devido a complexidade desta década conhecida como a “era dos contrastes” por seu exagero de “vida louca”, de sua permissividade comportamental, de sua empolgação desmedida e urgente, de suas músicas, chicletes e com refrãos repetidos, de duplo sentido e de sua moda com roupas de cores vivas, tecidos brilhantes, formas godês, silhueta balão, blusas largas, cor neon, cabelos super volumosos ou em estilo mullet, jeans rasgados, pochetes, maquiagem exagerada, brincos grandes e muitas pulseiras e as famosas ombreiras.
Tudo era over e permitido. Mesmo criticada atualmente por sua excentricidade, breguice, alienação e de sua “década perdida” por causa da estagnação econômica e inflação descontrolada, os anos oitenta é recorrentemente revisitado com ares saudosistas e de pura nostalgia ingênua.
Com essa premissa ambiente, o estreante na direção de um longa-metragem, Daniel Rezende, depois de uma carreira promissora e competentemente comprovada como montador dos principais filmes brasileiros da nova retomada (“Cidade de Deus”, “Tropa de Elite 1 e 2”, “Diários de Motocicleta”, “Os 3”, “Ensaio Sobre a Cegueira”, “As Melhores Coisas do Mundo”) e de internacionais como um dos editores de “A Árvore da Vida”, de Terrence Malick, apresenta “Bingo: O Rei das Manhãs”, sobre a história de Arlindo Barreto que interpretou anonimamente um dos cinco palhaços Bozo, na rede TVS (na época, agora SBT), personagem que foi criado por Alan Livingston em 1946 nos Estados Unidos.
O programa explodiu a “Bozomania” (causando a curiosidade do imaginário popular do “Quem é homem por trás da máscara”), ficava até oito horas e meia no ar, de segunda à sábado das 8h às 14h30 e das 16h30 às 18h30h) e chegou a líder de audiência no horário Xou da Xuxa (que aqui virou Programa da Lulu) da Rede Globo (aqui substituída pela Mundial), com shows sensuais de “Conga” da Gretchen (descoberta dançando em uma casa de Striptease). “O impossível é a meta”.
“Bingo: O Rei das Manhãs” constrói essa estética oitentista, de liberdade propositalmente amadora para se igualar ao padrão da época, e imprime um ritmo que condensa drama existencial-familiar, humor sarcástico, comportamento politicamente incorreto e apelo pop de ser um palhaço colorido (com moldes de Ronald MacDonald). “O desafio era de conseguir trazer uma sofisticação na dramaturgia e no personagem, involucrado em uma cultura-roupagem pop”, explica Daniel.
O longa-metragem, que infere em muito a estrutura visual do seriado “Glow”, da Netflix, inicia-se com recortes de comerciais e programas da época, como o das pilhas Duracell, do Pablo de “Qual é a Música”, da mensagem oficial da censura da classificação etária, a fim de ambientar os os anos oitenta e inserir o protagonista na sobrevivência da vida de um ator, que para ganhar dinheiro submete-se até a “interpretar” filmes pornochanchada, preparando-se e mostrando a “bundinha”. Mas que objetiva um papel sério na Novela das Oito. “A vida não é brinquedo não”, usa seu bordão, outra característica da década abordado (hoje nós temos os “memes”).
O ator Wladimir Brichta encarna o palhaço Bingo e se entrega absoluta e absurdamente ao papel que nós espectadores não percebemos sinais de interpretação. Ele é o próprio personagem. “Escolher fazer foi mais coragem que medo. Eu tentei descobrir quem era esse palhaço. Entender sua angústia de estar escondido e anônimo em uma máscara famosa. Até porque a ferramenta de um ator é nossa cara e nosso corpo”, disse Wladimir. O roteiro tinha sido escrito para Wagner Moura, que desistiu por incompatibilidade de agenda. O próprio filme usou isso e criou como um fictício making of de divulgação a briga encenado dos dois pelo papel.
“Bingo: O Rei das Manhãs” é um filme complexo. São máscaras dentro de máscaras. Camadas psico-existencialistas que se desenvolvem pelas situações do acaso. É “uma lente de aumento na dor, na alegria, no histrionismo, em 22o volts”. Aqui, Wladimir é Augusto Mendes. Que luta pelo papel de sua vida para o reconhecimento que gera a fama e automaticamente dinheiro. Que recebe apoio de sua família (uma mãe “megera domada”, obrigatoriamente aposentada – uma “diva apodrecendo” – pela emissora – a atriz Ana Lúcia Torre) e do filho “macaquinho” (o ator Cauã Martins, irretocável e ultra natural como Gabriel). Que anda contra a corrente contra um Pedro Bial nada amigável e cruel. Que aceita ser “objeto de cena”. Mas que quer deixar de ser figurante e ter mais falas. Que engata um teste após o outro. E que quando a sorte chega, a agarra com unhas e dentes. Impossível não inferirmos ao personagem Johnny Chase (o ator Kevin Dillon) do seriado “Entourage” da HBO.
Bingo acorda uma improvisação sem limites, sem regras e sem freios na língua. É engraçado, sacana, cínico, irônico, diz “verdades (ingênuas, quase de humor infantil) nas comédias de Shakespeare”, sacaneia os “valentes”, humilha crianças “altezas reais e reizinho da escola“ ao vivo com o intuito de “educar” e as colocar no lugar com batidas de microfone na testa. Tudo era permitido e liberado nesta década. “Eu não entendo vocês, brasileiros. É tudo diferente”, diz o diretor estrangeiro.
Os atores são como “mariposas”: “precisam de luz para viver”. Augusto adapta “ginga brasileira” ao produto da “gringolândia”. “O impossível é o que me deixa de pau duro”, diz enquanto faz laboratório no circo e contrata aulas do palhaço do picadeiro (o ator Domingos Montagner – um de seus últimos papéis). “Palhaço precisa de um dom. Palhaço não se lamenta. Palhaço sempre se levanta e tenta de novo. Palhaço não obedece”, ensina-se.
“Bingo: O Rei das Manhãs” tem emoção natural, criando sinestesia com o espectador, Nós sentimos, sofremos, rimos com as investidas a “gata arisca, durona e estressada da televisão” (a atriz Leandra Leal, que vive uma produtora evangélica e que marca o encontro no culto da igreja) e com sua solidão-frustração (iniciada pelas reais projeções do querer) que o levou a se envolver com drogas, chegando a utilizar cocaína (sempre dando um “brilho”) e crack nos bastidores do programa. Isso, “mais a falta da mãe, do filho e do palco”, o leva a ladeira abaixo, o “beijo da morte” e a redenção subida de “ajudar a parar a loucura” e a “arrumar os erros”. Reconstruir-se entrando para a Igreja Batista, virando pastor e se apresentando como um Bozo evangélico. “Qualquer lugar com foco de luz. No palco posso ser quem eu quiser. Sem ele, eu não sou nada”, emprega sua paixã incondicional.
“De que adianta ser o Bingo se ninguém pode saber?”, questiona-se. Ele é um “anônimo famoso”. O roteiro de Luiz Bolognesi (de “Bicho de Sete Cabeças”, “Uma História de Amor e Fúria”) fornece espontaneidade nos diálogos; credibilidade nos dramas mitigados de todo e qualquer subterfúgio de clichês; e realidade nas ações (como a cirúrgica, ultra-realista e catártica cena do soco na televisão), gerando a química perfeita dos atores. “Até para a audiência subir tem que ter tesão”, diz e é gargalhado por Vasconcelos (o ator sempre irretocável Augusto Madeira). “Cinema é assim: se a gente não se diverte fazendo, ninguém vai se divertir. Se a gente não se emociona fazendo, ninguém vai se emocionar ou assistir”, disse Luiz, que teve colaboração de Fabio Meira.
“O personagem principal é o Augusto. Não, o Bingo. Um ser humano megalomaníaco, que interpretava com setenta porcento de inspiração e trinta porcento de uísque. É um filme sobre personagem. Sobre entender melhor o ser humano. Um recorte do artista. De seu reconhecimento em uma década totalmente exagerada. Hoje a briga não é mais pela audiência e sim por likes”, finaliza Daniel Rezende.
“Bingo: O Rei das Manhãs” é um filme despretensioso, divertido, sarcástico, debochado, sacana, aprofundado, que tem ritmo exato e excelentes interpretações, que revisita as manhãs do infantil Programa do Bozo com sofisticação técnica e que não deixa de fora a trilha sonora da época, que inclui Trem da Alegria, Tokyo e seu “Humanos”, Titãs e “Televisão”, Roupa Nova e “Linda Demais” e Dr. Silvana e Cia com “Serão Extra” (“Ela foi dar mamãe… Eu fui dar mamãe… Eu fui dar um serão extra, trabahei com o patrão”). Recomendado.