O Outro Lado do Preconceito
Por Fabricio Duque
Uma das características principais da arte cinematográfica é acompanhar a evolução comportamental das épocas em que vivemos, aceitando e se adaptando aos novos conceitos e novas questões antes enxergadas como tabus e ou doenças e ou excêntricos desejos-quereres. É uma obrigação moral. Um dever ético questionar os porquês do não e lutar pela liberdade pluralista do sim. Desta vez, os holofotes focam o transgênero.
Filmes como os brasileiros “Tatuagem”, de Hilton Lacerda; e “Paraíso Perdido”, de Monique Gardenberg; o chileno “Uma Mulher Fantástica”, de Sebastián Lelio; e o seriado americano multicultural “Sense8″ foram alguns exemplos desta investida. De incluir esses indivíduos na naturalidade de ser o que quiserem ser.
E agora, estreando nos cinemas após sua pré-estreia no Cineclube Queer do Estação Net Botafogo, no Rio de Janeiro, depois de ter passado no Festival do Rio 2017, “Berenice Procura” é outra obra que ajuda a arquitetar a tolerância a uma dita diferença que precisa ser igualitária. Baseado no livro homônimo do autor carioca Luiz Alfredo Garcia Roza, especializado em obras policiais, e que inclusive já ganhou o prêmio Jabuti por “O Silêncio da Chuva”, em 1997. Esta, em questão aqui, foi escrita em 2005, em um mundo que ainda sofria um pós bug do milênio que não aconteceu. Uma época que a figura da travesti era depreciativa e subjugada.
Como foi dito, o mundo mudou. E o longa-metragem, que tem como cenário de Copacabana (bairro favorito de seu autor para suas histórias), aproveita para consertar com novos elementos politicamente mais corretos. Podemos dizer que é livremente inspirado, visto que personagens ganham mais importância e outras questões atuais são abordadas. Como a de que o Brasil é o país do mundo que mais mata travestis. Estranho pensar isso se comparamos com o pré-progresso de cinco décadas atrás.
“Berenice Procura” é um filme que busca respeitar uma ambiência literária, e que por mais que identifiquemos o tempo, somos imersos em uma poética liberdade de um saudosismo importado ao agora, à moda de “O Outro Lado da Rua”, de Marcos Bernstein, com um característico “Achados e Perdidos”, de José Joffily (outra obra de Garcia Roza).
É também um filme urgente, pulsante, tensionado, orgânico e sensivelmente libertário. Inicia-se com uma sensorial e solar epifania fotográfica. Não há como não inferirmos ao primeiro capítulo da primeira temporada de “Twin Peaks”, de David Lynch, e seu mistério envolvendo Laura Palmer. Sim, a parte técnica é uma maestria à parte, como por exemplo o tom imagético etéreo-psicodélico-purpurina (Kitsch Almodóvar) dos shows performances (mega produção) da boate-submundo com “Last Dance”, no melhor estilo “Priscilla – A Rainha do Deserto”, de Stephan Elliott.
Com suas pistas, investigações, discussões por mensagens na porta do quarto, “Berenice Procura” desenvolve sua rotina cotidiana que é abalado por um cadáver encontrado. A primeira cena é uma prévia do pós trinta e seis horas em que uma taxista sai correndo para saber melhor do crime. Curiosidade ou medo de que fosse alguém familiar? É muito mais que um filme Trans, é uma antropológica análise sobre sobre nossa sociedade. “Você acha que alguém sonha com uma vida dessas? Que escolhe esse rótulo?”, desabafa Isabelle.
A taxista Berenice (a atriz Claudia Abreu) está acostumada a passar horas e horas pelo trânsito caótico da cidade do Rio de Janeiro e de seu bairro natal, Copacabana. E a ver tudo de seus passageiros (os habituais e ou aqueles que quase fazem sexo). Consumida pela profissão, o pouco tempo que tem de sobra, ela se divide entre a criação do filho Thiago (o ator estreante Caio Manhente), um adolescente descobrindo sua sexualidade, e sua conturbada relação com o marido Domingos (o ator Eduardo Moscovis), um repórter policial de programas sensacionalistas da televisão. Até que o assassinato de Isabelle (a atriz Valentina Sampaio), uma travesti, na praia de Copacabana, desperta um lado seu investigativo, mudando sua vida.
Dirigido por Allan Fiterman (de “Embarque Imediato”), o filme acompanha, livre e próxima (como uma câmera-mosca, principalmente na cena em que Berenice atravessa os carros e ou as reações impecáveis da personagem da atriz Vera Holtz), sem suavizações e com passionalidades enraizadas (“O que adianta uma cara bonita, se não sabe subir no salto?” e ou “Pão com ovo? Eu trouxe mortadela”). É também uma obra coral, de momentos, de núcleos encontrados e cúmplices, de junção de peças de um quebra-cabeças. Sinestésico, delicado, calmo e sem pressa.
“Berenice Procura” também acontece por seu ruídos potencializados, por suas engrenagens, por seus mistérios e segredos, por seus celulares que gravam causos e barracos, por suas auto-investigações, por suas quentinhas (“comida de botequim sem gosto”). O que vemos é uma Copacabana decadente, longe de ser a Cidade Maravilhosa “Princesinha do Mar” e com uma trilha-sonora sôfrega de Johnny Hooker (com a participação do mesmo cantando “Eu Vou Fazer Uma Macumba Pra Te Amarrar, Maldito”) e seu “Amor Marginal” (música esta também cantada em “Paraíso Perdido”, também por uma travesti que “gostava de ser homem”). É a normalidade de uma vida “suave”.
Nós observamos também uma mulher que permanece separada do marido machista e hipócrita (homofóbico e preconceituoso – lembrando o personagem pai de “Canastra Suja”, de Caio Soh), mas morando sob o mesmo teto (com sexo necessidade de protocolo – para ele, instintivo com seu “objeto” de prazer; para ela, opressivo, submisso e choroso) tudo “aceito” e concedido para conservar a estrutura da boa família a seu filho adolescente. “Na vida, precisamos de trunfos”, diz-se.
“Berenice Procura” é sobre famílias disfuncionais, “imperfeitas”, unidas “pelo desespero”. E ou pelo “sexo vulgar”. E ou pela descoberta de estar “dormindo com o inimigo”. Berenice muda e relaxa as preocupações. Entra “pra jogo” e experimenta ilicitudes que nunca teve oportunidade. Porém, é um filme irregular, por correr com as resoluções em algumas cenas. E ou por incluir informação demais em um determinado instante. E ou por ficar explicado, vulnerável e palatável demais. Ainda que pela última cena, que mostra a qualidade interpretativa de Du Moscovis ao se entregar sem vaidades e medos. É um filme de brilhos e de atores.