Um filme em que os raios nunca acabam
Por Fabricio Duque
“Ava Yvy Vera – Terra do Povo do Raio”, dos realizadores Genito Gomes, Valmir Gonçalves Cabreira, Johnaton Gomes, Joilson Brites, Johnn Nara Gomes, Sarah Brites, Dulcídio Gomes e Edna Ximenes, coletivo composto por lideranças e jovens da Tekoha Guaiviry (território retomado do povo Kaiowa) no Mato Grosso do Sul. Integrante da mostra competitiva da Nona Semana Festival de Cinema 2017, o filme é muito mais que um filme etnográfico.
É muito mais que um estudo antropológico sobre o comportamento sócio-político atual dos indígenas que se transmutam mais em seres cosmopolitas. Estes pontos existem e são tratados com relevância. A essência deste documentário é realizar uma denúncia contra os assassinatos destes seres que foram perdendo suas terras, suas raízes e seus lares. É um filme que permite que suas vozes, seus medos e suas necessidades sejam ouvidas.
O filme, que buscou referência (“para entender”) no épico “Martírio”, de Vincent Carelli e Ernesto de Carvalho, e sem querer inferiu a “Não Devore Meu Coração!”, de Felipe Bragança, é resultado de um projeto de extensão do Programa Imagem Canto Palavra no Território Guarani Kaiowa da UFMG para retratar a “coragem que envolvia uma inventabilidade militante” como “máquinas de geração de presença” para “afirma e defender um estilo de vida de todas as formas possíveis”, disse a professora Luciana de Oliveira, que coordenou o projeto, que custou meros 150 mil reais.
“Ava Yvy Vera – Terra do Povo do Raio” inicia-se com a câmera na mão de um representante indígena que filma uma árvore (que funciona como torre sinal aos celulares) e expõe em tom de terapia confessional lembranças de uma época segura sem pistoleiros “Karaí” – “que ficam ricos” por causa do universo comercializado, com remédios naturais e frutas, e que ainda não aumentava o “vento”. Agora, eles protegem-se dos brancos e recebem comidas “compradas”, como óleo e arroz.
É uma guerra diária. De proteção e enfrentamento. De camuflar a presença com galhos amarrados na cabeça. De resistir e permanecer no “coração da terra”. Entre festas-rituais de bebida de arroz que “relaxa”, embebeda e faz com que entrem em contato com a diversão e a natureza. “Eles nunca vão encontrar nosso modo de vida. Nosso viver é diferente”, atesta-se.
“Ava Yvy Vera – Terra do Povo do Raio” é sobre “errar o caminho certo”. É sobre um povo deslocado que luta para conservar os poucos simbolismos e suas raízes (como as pinturas nos rostos e nos corpos – agora vestidos e politicamente corretos ao moralismo do olhar do outro – e ou as ocas-moradia-escola) , mesmo com dentes escovados dentes com pastas-produtos comerciais-químicos. Os alunos possuem mochilas e cadernos estilosos. O professor usa uma calça jeans e mochila.
O cinema daqui é direto. Urgente. Decisivo. Decisório. De contemplação estendida da ação. Que precisa se expôr para se salvar, sem suavizações estéticas-formais. Eles são simples, vivem uma vida simples e contam histórias simples, mas dotadas de sofrimentos e perdas. Mesmo assim não perdem a esperança e a alegria. E rindo, sobrevivem como super-heróis às adversidades de um caminho cruel e sádico, como as crianças que “roubam a cena” de uma familiar senhora entrevistada.
“Ava Yvy Vera – Terra do Povo do Raio” faz também uma reconstituição dos acontecimentos trágicos que passaram pela ficção teatralizada, inclusive com a interpretação dos sons dos motores das motos perseguidoras. A câmera subjetiva nos insere em suas vidas. Nós somos eles reverberando suas vozes. E ficamos impressionados com a potência e força de uma senhora (sem esquecer da própria vaidade) que bate a madeira fazendo com que a câmera tremesse. Nós também somos interagidos à sentir vibrações. O documentário finaliza com a sagacidade de uma poesia coloquial, de brilhos luminosos de tempestades no céu, sobre este “lugar onde os raios nunca acabam”. É um documentário sobre aqueles que persistem sem arredar os pés de suas terras.
“Este filme é um acontecimento. É uma ponte inter-geracional de conhecimento registrado para todo sempre. É uma relação de confiança. É o projeto de uma oficina de montagem. É sobre o afã de inventar a vida e a política. É sobre o não esquecer da morte do pajé Nisio Gomes, pai de um dos diretores Genito Gomes – que agora assumiu o papel de pajé na tribo”, complementa Luciana de Oliveira que conversou com o público antes e depois da sessão.
“Aqui é o coração da terra. Estamos lutando pelo coração da terra, este território. Não lutamos só por esse pedaço, mas por todos os territórios do coração da terra. Esse é o nosso lugar. Nós, Avá, somos descendentes do coração da terra.” (Rezador Valdomiro Flores, Tekoha Guaiviry, 2014).