O melhor amigo do homem pré-histórico
Por Pedro Guedes
Mais um filme sobre a amizade entre um homem e seu cachorro. Pois é, “Alpha” é, em sua essência, uma obra que gira entorno de temas batidos, constrói arcos dramáticos previsíveis e apela eventualmente para alguns clichês bem básicos. O que faz a diferença aqui, no entanto, é que o diretor Albert Hughes (também responsável por “Do Inferno” e “O Livro de Eli”) toma algumas atitudes que, mesmo sem reinventarem nenhuma roda, ao menos impedem o longa de se manter totalmente no lugar-comum, investindo numa abordagem estética selvagem, situando a trama num período pré-histórico e, claro, trocando o cachorro por um lobo.
Escrito por Daniele Sebastian Wiedenhaupt (que estreia na função de roteirista), “Alpha” se ambienta no período Paleolítico Superior, há mais ou menos 20 mil anos, e enfoca uma tribo que vive caçando búfalos, lobos e outros animais que surgem à frente. Após ser atacado, o jovem Keda despenca (não, não é trocadilho) de um penhasco e é dado como morto pelos demais membros de sua tripo; inclusive por seu pai Tau, que resolve prosseguir com sua viagem depois de muita lamentação. O que ninguém esperava, porém, é que Keda tivesse sobrevivido – e quando um lobo aparentemente descontrolado acaba cruzando em seu caminho, o garoto aos poucos consegue desenvolver uma relação de amizade com o animal e ainda lhe dá um nome formal: Alpha.
Dirigido por Albert Hughes de maneira inesperadamente objetiva e feroz, “Alpha” consegue encontrar o tom ideal entre a ingenuidade infanto-juvenil da trama e a selvageria característica dos protagonistas. Ao longo do primeiro ato, quando os personagens e o contexto da história estão sendo apresentados cuidadosamente, o cineasta se dá o direito de criar uma cena onde os caçadores estão reunidos ao redor de uma lareira e, em pouquíssimos segundos, um lobo subitamente ataca e mata um deles, estabelecendo um clima bastante cru e imprevisível – o que vai de encontro, por outro lado, com a leveza da sequência onde Keda e Alpha se divertem nadando em um lago. Que o filme consiga conduzir essa transição de modo eficaz é, portanto, um mérito e tanto.
Além disso, Hughes e o diretor de fotografia Martin Gschlacht se saem bem ao ilustrarem a brutalidade do período no qual a história se passa através de cores quentes, tons sépia e alto contraste, criando algumas imagens que se destacam justamente por serem tão estilizadas (e algumas delas se beneficiam da câmera lenta, como aquela que mostra Keda sendo jogado para fora do precipício). E o que dizer do belíssimo plano onde o protagonista e Alpha são separados por um chão de gelo, posicionando cada o primeiro na parte de baixo e o segundo, na de cima? Para completar, se a trilha de Joseph S. DeBeasi acerta ao investir em tambores fortes que tem tudo a ver com a cultura tribal dos personagens, a montagem (aliada ao bom senso estético que Hughes demonstra aqui) brinca pontualmente com o fundo ao transitar de uma sequência para a outra (e fazendo, com isso, que o segundo ou terceiro planos sejam substituído por aquele que dará início à cena seguinte).
Infelizmente, isto não quer dizer que “Alpha” funcione totalmente em sua abordagem estilística: em vários instantes, Albert Hughes exagera na quantidade de planos fechados e imagens onde paisagens são mostradas aleatoriamente, o que de vez em quando faz o filme soar como uma produção mais televisiva do que cinematográfica (e mesmo que a montagem mereça elogios, ela se excede ao empregar cortes desnecessariamente rápidos em alguns momentos onde um ritmo menos acelerado seria bem-vindo). Como se não bastasse, a computação gráfica utilizada para conceber alguns animais ferozes está longe de ser das melhores – e dá para perceber a diferença apenas observando Alpha em diferentes pontos da narrativa: quando ele ataca com selvageria, trata-se de uma criação digital artificial e óbvia; quando ele interage amigavelmente com Keda, um lobo em carne-e-osso (bem mais convincente) passa a integrar a cena.
Mas este nem é o maior problema de “Alpha”, que, como foi dito no início, jamais consegue esconder seus vários clichês: revelando-se como mais uma daquelas “histórias de sobrevivência” (pensem em “Náufrago”, “O Impossível”, “Gravidade” e “O Regresso”), o roteiro de Daniele Sebastian Wiedenhaupt apresenta Keda como um jovem piedoso e inocente no meio de um monte de bárbaros que cobram virilidade do garoto, o que por si só configura mais um clichê – e quando parecia que não tinha como o filme ficar mais óbvio, surge ainda a “amizade impossível entre um ser humano racional e uma fera ameaçadora à primeira vista, mas que aos poucos se torna dócil e amável”. Por fim, a estrutura do roteiro não é definida com muito cuidado, já que o primeiro ato é mais longo que o ideal e, com isso, acaba obrigando o resto da narrativa a resolver alguns arcos de forma apressada demais.
Apesar dos tropeços, porém, “Alpha” é bem-sucedido ao cumprir seu objetivo mais importante: fazer o espectador se envolver com a história que está sendo contada (independente desta ser a mais batida possível). E se o Cinema já mostrou milhares de vezes que o cachorro é o melhor amigo do homem, ao menos desta vez há o frescor de saber que este cachorro (no caso, um lobo) pertence à pré-história.