Um registo bon vivant
Por Bruno Mendes
O documentário ‘A vida extraordinária de Tarso de Castro’ ( dirigido por Zeca Brito e Leo Garcia) é uma indisfarçável ode ao jornalismo apaixonado e feito com “alma” pela velha escola e não se priva em expor os aspectos mais românticos da profissão. Conduzido por entrevistas com amigos e colegas do idealizador do Pasquim, a produção é clara e honesta: o ímpeto é homenagear, jogar confetes para valer e até lamentar o fim daqueles tempos que não irão se repetir. Há censura e perseguição nos anos de AI-5, mas criatividade de sobra em afrontas satíricas ao governo, há alegria nas “reuniões de pauta” que aconteciam em mesas de bar regadas a garrafas de whisky. A redação era a extensão do bar e não o contrário.
Todo esse tom laudatório, contudo, não flerta com inverdades, nem despenca para saudosismos piegas, por mais que um dos entrevistados não tenha um pingo de preocupação em escolher eufemismos ao definir o jornalismo de hoje: “uma merda”. É com entusiasmo que acompanhamos os mergulhos quase catárticos de Tarso à profissão, em tempos onde a subjetividade e o fazer poético tinham vez. Ignorava-se preocupação excessiva com focos, enquadramentos, vestuários ou padrões acadêmicos, pois a paixão e a inteligência eram carros-chefe em entrevistas com Chico Buarque, Caetano Veloso e Vinícius de Moraes em programas de TV. Em relação ao texto, a obra de Zeca Brito e Leo Garcia amplifica a ironia de Nelson Rodrigues em relação aos idiotas da objetividade, mesmo que não exista nenhuma crítica veemente em relação à estrutura dos parágrafos dos
textos jornalísticos da era do lead.
Mas é no estilo de vida de Tarso de Castro que o doc declina-se com ímpeto maior. Beberrão, irreverente, polêmico, impulsivo, mulherengo, sábio, provocador. Não faltam adjetivos ao sujeito que não se bicava com Millor e tinha relações de amizade com nomes de peso da imprensa nos anos 70, 80 e 90 como Luiz Carlos Maciel e Eric Nepomuceno.
A obra confere muita atenção ao sucesso do jornalista com as mulheres e ao hábito dele de beber com frequência. Nesse sentido, o tom adotado pelos realizadores é guiado pela leveza e descontração e observa-se certa “embriaguez documental”. Relatos são feitos em bares barulhentos e em sofás da casa em aparente descompromisso com qualquer tipo de zelo estético ou protocolo de reverência em sentido mais careta. Aliás, caretice é última palavra que pode ser associada a uma figura que era a sátira viva. Inquieto, falador.
Em determinada passagem um dos entrevistados pontua que Tarso tinha o hábito de procurar algum telefone e ligar para várias pessoas após chegar a determinado lugar. Longas conversa com amigos, colegas de redação, mulheres, muitas mulheres. Nos dias de hoje seria um dependente do celular.
É até curioso que alguns entrevistados fingem conversar pelo aparelho enquanto a câmera forja certa naturalidade ao flagrá-los. Por este peculiar modus-operandi de entrevista, há de se supor que o doc busca flagrar em cada entrevistado um pouquinho da paixão do homenageado por histórias, conversas, declarações. E pelo efusividade dos relatos dá para causar estranha impressão que a pessoa do outro lado da linha nos papos fakes seja o próprio Tarso de Castro. Seria essa a intenção?
Sim, na maior parte do tempo em que Tarso de Castro exercia a função de jornalista e esvaziava garrafas de whisky entre encontros com a turma, romances e transas fortuitas, o Brasil sofria com a ditadura militar e todos os problemas sociais amplificados hoje.
Paradoxalmente o hedonista e habitual frequentador do Antonio’s bar no Leblon tinha consciência social, empatia em relação às dificuldades enfrentadas por milhares e de acordo com relatos só brigava com quem era de cima. A vida extraordinária de Tarso de Castro saúda um sujeito que escrevia em tempos que o jornalismo não era pautado pelo discurso único dos jornalões modernos e mesmo nos tempos de repressão, a criatividade e o talento literário coloriam as tintas dos diários.
É compreensível sugerir que Tarso tinha severas imperfeições morais. Em outras palavras: certas transgressões passavam dos limites. De todo modo, faz MUITA falta um tresloucado com o pensamento fora da caixa nas redações, no Facebook, no Twitter, Instagram e em qualquer modernice que dissemine informação.