Um fracasso com boas intenções
Por Pedro Guedes
“A Vida em Si” não é um filme desastroso. Investindo em uma abordagem estética, temática e narrativa que muitos vêm apontando como similar à de “This Is Us” (o que não é surpresa alguma, já que o criador da série, Dan Fogelman, é também diretor e roteirista deste filme), a produção se estabelece como uma reflexão a respeito de como a vida é cheia de maluquices inacreditáveis (e muitas vezes dolorosas), mas que ainda assim vale a pena ser vivida – e neste processo, Fogelman faz de tudo para conferir estilo e dinamismo à narrativa, sugerindo que o filme ao menos conta com boas intenções. Infelizmente, isso não é o suficiente, pois o que importa mesmo é o resultado destas boas intenções – e “A Vida em Si” não chega nem perto de fazer jus ao seu imenso potencial.
Dividindo a história em cinco capítulos (uns bem maiores do que outros), o longa começa acompanhando o casal Will e Abby Dempsey, que namoram desde a época da faculdade e estão prestes a ter uma filha. Depois que uma tragédia ocorre na vida dos dois (e é meio difícil falar sobre isso sem spoilers), o filme subitamente passa a se concentrar na filha do casal: Dylan, que cresceu com o avô e se tornou uma jovem inconsequente. Mas não demora muito até que o roteiro resolva deixar a garota de lado e comece a enfocar personagens completamente diferentes: a família González, que, situada no interior da Espanha, viajou a Nova York e viu de perto a tal tragédia que destruiu o casal Dempsey – e definiu a vida de Dylan para sempre.
Como dá para perceber, o roteiro de Dan Fogelman é bastante ambicioso, envolvendo diversos núcleos de personagens em países e épocas totalmente distintas. O problema é que o próprio filme parece se confundir com as ideias que ele mesmo elabora – e isto se estende aos aspectos técnicos da obra, que, ainda em seus primeiros minutos, revela-se esteticamente bagunçada e desnorteada: iniciado com uma narração em off de Samuel L. Jackson que leva o espectador a ficar indeciso quanto a quem será o protagonista da trama, o longa começa apostando na metalinguagem apenas para abandoná-la em seguida; depois fica indo e voltando no tempo como se isso fosse torná-lo complexo em sua carpintaria dramática; e, por fim, acaba se tornando bem mais complicado do que precisava, como se a trama e os personagens fugissem ao controle do roteiro. Em outras palavras: “A Vida em Si” é uma confusão de estilos que jamais parecem se encontrar, como se Dan Fogelman simplesmente atirasse uma série de abordagens estéticas diferentes a fim de encontrar uma que o satisfaça.
Em contrapartida, existem momentos onde os excessos estilísticos de Fogelman acabam surtindo efeitos surpreendentemente eficazes: ao investir no conceito de “narrador não confiável” (apontado pelo crítico literário Wayne C. Booth no livro “The Rhetoric of Fiction”, em 1961), o roteiro consegue associar este recurso narrativo à própria maneira como a vida se desenrola, reservando uma série de surpresas/decepções que põem em cheque o protagonismo do indivíduo. Além disso, a direção de Fogelman se alia à boa montagem de Julie Monroe em algumas elipses que soam particularmente elegantes, como aquela que encobre os anos de amadurecimento do jovem Rodrigo González enquanto ele corre no meio de um milharal. Para completar, é curioso notar como o personagem de Oscar Isaac interage com os flashbacks que ele mesmo está narrando, chegando a encostar no rosto de sua versão rejuvenescida.
Por falar em Oscar Isaac – um ator geralmente admirável –, aqui ele sucumbe ao melodrama presente no roteiro e falha em encontrar um equilíbrio entre as passagens mais dramáticas (que soam artificiais) e os momentos bem humorados (exagerados e sem graça). Em compensação, sua interação com Olivia Wilde é um dos pontos altos do filme: sim, o fato de Will e Abby irem a uma festa à fantasia vestidos de Vincent Vega e Mia Wallace os transforma no casal de cinéfilos menos criativo do mundo, mas isto não elimina a doçura, a simpatia e o sentimento de preocupação mútua que existe entre os dois (e Wilde, por sua vez, exibe um carisma notável ao ilustrar a vivacidade de Abby). Já Olivia Cooke faz um bom trabalho ao transformar a jovem Dylan em uma personagem que não encontrou um norte em sua vida, chegando ao ponto de desrespeitar seu avô não por desprezá-lo, mas por ser inconsequente – e é uma pena, portanto, que o longa pouco ofereça à atriz além de uns 15 minutos de tela.
Aliás, a estrutura de “A Vida em Si” é um problema à parte: embora dividido em cinco capítulos demarcados, o roteiro jamais consegue equilibrar o tempo de cada história – e a primeira, que se concentra em Will e Abby, ocupa quase a primeira metade inteira da projeção, ao passo que a segunda, protagonizada por Dylan, se resume a poucos minutos. E a consequência não poderia ser outra: quando um capítulo está finalmente engrenando, o filme subitamente decide cortá-lo e saltar para outra história, resultando em uma sensação de expectativa frustrada que se repete constantemente ao longo da narrativa. Assim, quando o espectador está começando a se interessar pelo arco de Dylan (e ela, de fato, parece ser uma personagem interessante), o foco imediatamente muda para a família González, que não parecia ter nada a ver com o que vinha sendo mostrado até então – e gerando, com isso, uma confusão pontual que não precisava ocorrer.
Mas o que mais compromete “A Vida em Si” é o aspecto novelesco que contamina o roteiro e a direção de Dan Fogelman: convencido de que está contando uma história grandiosa e emocionalmente poderosa, o longa apresenta um monte de situações que já são sentimentais por natureza (uma garotinha que cresceu órfão; um triângulo amoroso; uma mãe morrendo de câncer) e que tornam-se ainda mais artificiais graças à condução excessivamente açucarada de Fogelman. Para piorar, o roteiro amarra essas tramas todas através de coincidências simplesmente horrorosas, com destaque especial para aquela que liga o quarto ao quinto capítulo – e se o filme esperava que essas incongruências pudessem ser rebatidas com a afirmação de que “a própria vida é composta por conveniências absurdas”, então… não deu certo.
Investindo em uma série de diálogos que parecem saídos de um livro de autoajuda dos mais clichês (e o terceiro ato, então, é repleto de monólogos “inspiradores” que soam artificiais e novelescos), “A Vida em Si” é uma obra ineficaz em um mundo pós-“Magnólia” (este, sim, é um filme que sabe utilizar as coincidências e a grandiosidade narrativa a seu favor). De todo modo, é difícil rejeitar o trabalho de Dan Fogelman em sua totalidade, já que algumas de suas boas intenções acabam obtendo resultados que chamam a atenção.
O que dá para dizer, no fim das contas, é que “A Vida em Si” é um fracasso nobre.