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Crítica: A Outra História do Mundo

Histórias contadas que semeiam mais que utopias

Por Fabricio Duque


Uma das maestrias do cinema uruguaio, próximo ao argentino e ao novíssimo brasileiro, é a sinestesia-condução de sua cadenciada narrativa pela naturalidade orgânica do existir. É um método de imersão não encenado, cujos personagens são ao invés de pretender ser. Como a essência da Radio Mosquitos.

Além dessa característica, o filme em questão aqui, “A Outra História do Mundo”, inevitavelmente, aborda o tema político da ditadura e a censura à arte e à História (esta “adulterada” ao povo) pelo viés humanizado, intimista, pessoal, espirituoso e romanceado. É um conto sobre vidas afetadas e sobre aqueles que com ingênuas (e pequenas) “ações estúpidas” (vinganças de imposição de poder – assistidas sem reação) tentaram mudar o rumo do mundo.

Dirigido por Guillermo Casanova (quase estreante, em seu segundo filme “El Viaje Hacia El Mar”, sobre um grupo de homens que viajam pelo Uruguai para ver o mar), e com a presença no elenco do ator César Troncoso (de “O Banheiro do Papa”) e do brasileiro Claudio Jaborandy, o longa-metragem é uma crônica que concretiza utopias e seus simples propósitos. É um confronto terapia de choque daqueles que aceitaram a situação atual da vida. Nós, espectadores, não conseguimos não inferir a “O Auto Da Compadecida”, obra de Ariano Suassuna, em que um personagem diz “Não sei. Só sei que foi assim”.

“A Outra História do Mundo”, baseado na novela “Alívio de Luto”, de 1998, escrito por Mario Delgado Aparaín, é também uma parábola político-social que desdobra sua trama pelo poder da palavra (e do perspicaz conhecimento) e não por uma infantilizada ação contra o Coronelismo militar (suas arbitrariedades, seus simbólicos anões de jardim e suas ordens ingênuas) que engessa e limita o individual progresso. Contra o impedimento de se sentir a esperança do futuro. Contra a liberdade “saqueada pelos corsários do ocidente”. Contra a “embriaguez do poder”. As “instruções da vitória” estão embasadas na “sabedoria da resistência anônima”.

Em um vilarejo chileno em plena ditadura, Milo (Roberto Suárez) e Esnal (César Troncoso) são dois amigos inconformados e criativos que resolvem se rebelar contra as regras rígidas (como a hora de recolher às dez horas) instauradas pelo novo coronel local sequestrando seu bem mais precioso: uma coleção de anões de jardim. A ação não é executada com perfeição e Milo acaba sequestrado pelos militares, o que leva sua família à derrocada e Esnal a se tornar recluso. Reanimado pelas filhas do amigo, no entanto, ele deixa a solidão de seu quartinho com um plano mirabolante.

O longa-metragem busca analisar e contemplar o inerte estágio atual de uma alienante resignação. É uma obra de crescimento, principalmente intelectual e intuitiva. Da conversa monocórdica no cemitério em um vilarejo interiorano (cujo tempo parece estar congelado), com suas verdades diretas e brincadeiras-piadas com amadora alegoria caseira, sobre a “maldição dos avôs” – velhos escravocratas”, que “rejeitavam a língua Castelhano”, sobre “bandidos da Hungria”, sobre a desilusão da filha “gostosa”. Até a percepção que a mudança só acontecerá de fato com as artimanhas certas, envoltas sub-textualmente por sutis jogadas como em uma partida de xadrez.

“A Outra História do Mundo” guia-nos pela construção de um bucólico tempo que não corre e que observa micro-ações, como os cúmplices silêncios à mesa de jantar (e a falta da fala, um dos paralisantes resquícios da repressão) e dos olhares entendidos, a fim de nos imergir nos únicos, particulares e simplistas objetivos existenciais de seus personagens. Como a do carteiro. Sempre provisório. Contudo, estes contraventores de primeira viagem, pelo iniciante engajamento militante e falta de prática, agem como desengonçados em seu “crime-intervenção” de cunho político. E não se dão conta das consequências de sua luta social contra os desmandes: culpas, perdas, separações, possíveis prisões, desestruturação familiar e a covardia do medo da repressão (que pela repetição encontra a loucura).

É a teoria do Caos. Uma simples ação impensada e impulsiva (intransigentes com as próprias convicções e quereres) afeta a todos. Mas menos a quem deveria realmente importar. Confrontar os soldados de um quartel general é apenas uma dose paliativa. Retirar o bar e o direito de beber é mexer com a única fuga-diversão da realidade que cada um tem (e sobrevive). Entre elipses, estudos e novas ideias arquitetadas, o filme fornece uma outra versão da história universal. Antes insignificante. Agora, elemento de protesto. “A verdadeira história conta-se pela batalhas”, indica o direcionamento. “Coisas claras e concretas sem metáforas”, complementa com ameaças “de um elefante”. Nós espectadores somos questionados com o medo excessivo do ensino. Claro que temos a percepção certeira e inquestionável que quanto mais o povo for ignorante sem o conhecimento, mais os verdadeiros letrados e poderosos poderão moldá-los e podá-los como lhes bem aprazer.

“A Outra História do Mundo” é também uma ode à educação. Uma transgressão ideológica revisitada. Uma revolução pelas palavras em uma animada e performática montagem da história do mundo. É uma forma de transcender o ano de 1492. De criar curiosidade. De se rebelar contra as limitações didáticas impostas. De conduzir esta população (que viveu até o momento na escuridão) para fora da Caverna de Platão. À luz da verdade. Da História traduzida em um novela. De crianças em adultos. Até mesmo sobre a “orgia de canibais”. São projeções, paradoxos fronteiriços e artifícios cênicos de um contador (professor fanfarrão, brincalhão e bem humorado) para abrir e expandir o olhar.

É um filme que nos conduz pela criatividade dos artesanais efeitos especiais, que semeiam a discórdia com afiada manobra; pela narração fascinante de um farol que ilumina; pelo meio copo de cerveja e um poema ardente que resulta na “colheita crepuscular”; pela trilha-sonora de Belchior e sua música “Velha Roupa Colorida; pelo paralelismo Viking e “Romeu e Julieta”. É a revolta pelo sarcasmo, que é o principal sinal de inteligência. É a revolução das máscaras e seus resgates apoteóticos.

“A Outra História do Mundo” traz também outro insight. A da família que escolhemos e não que nos foi doada. E esta fábula a La Michel Gondry nos revela que a vida segue seu rumo. Independente do que aconteça no presente. Que o fugir é uma opção. E o voltar (com feijoada) uma opção válida. Um filme que concretiza “Alice no País das Maravilhas” com simbólico corte de cabeça. É uma obra exceção, que nos mostra que uma andorinha pode sim fazer verão e “alvoroçar toda uma aldeia”. Um filme que desenha sua narrativa com a equilibrada abordagem do sentimental versus o realista. Da utopia versus o que se pode desdobrar de tudo isso.

4 Nota do Crítico 5 1

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