A Força do Quarto Poder
Por Michel Araújo
Durante a Festa do Cinema Italiano 2018
Em meio a tantas conturbações na era da pós-verdade (expressão utilizada sobre as mídias digitais de veracidade duvidável da contemporaneidade), especialmente em cenários políticos e jurídicos onde a atestação de fatos e a coerção de opinião pública mostram ter quase nenhum embasamento na razão, o debate acerca da extensão dos poderes da mídia sobre a sociedade está mais que atrasado. Em “A Garota na Névoa” (2017), integrante da curadoria do festival 8 ½ Festa do Cinema Italiano, algo reminiscente do fenômeno Blow-Up (1966) ressurge num contexto mais contemporâneo. O thriller investigativo britânico-italiano de 1966, do mestre Michelangelo Antonioni, rendeu inúmeros obras sucessoras de seu legado temático: a busca obsessiva e quase irracional de uma verdade em que se quer acreditar, afastando-se, porém, da verdade efetiva. Vemos, portanto, a síntese da movimentação narrativa herdada pelo clássico antonionesco com a repercussão midiática da atualidade a favor dos fins da busca obstinada do protagonista.
No longa-metragem estreante do diretor Donato Carrisi (o qual também é autor do suspense literário homônimo que originou o filme) acompanhamos a busca do agente policial Vogel (Toni Servillo; “A Grande Beleza”, “As Consequências do Amor”) numa pequena comunidade cristã onde a jovem Anna Lou Kastner (Ekaterina Buscemi) desapareceu, e este usa da influência da pretensiosa cobertura midiática do caso para coordenar sua investigação perigosamente intuitiva. O professor do colégio de Anna, Loris Martini (Alessio Boni; “Arrivederci Amore, Ciao”, “Caravaggio”) é especulado como principal suspeito em razão de imagens suas rondando os arredores da jovem nos dias anteriores ao desaparecimento serem vazadas para a imprensa, e logo sua vida começa a ruir aos poucos em razão de sua incriminação.
A narrativa do filme e suas questões morais são, de fato, o ponto mais forte da obra e o que realmente valida a avaliação atribuída pelo Vertentes do Cinema. Em termos técnicos, o filme cumpre razoavelmente seu entretenimento visual e sonoro, sem, entretanto, apontar muita autenticidade ou desvio do formato narrativo clássico. Certos close-ups, entretanto, acompanhados de desenho sonoro inquietante conseguem se mostrar estratégias interessantes. Além das questões propriamente cinematográficas, a atuação também supre a carga emocional necessária a conduzir a obra dramaticamente, porém não ultrapassa esse patamar do necessário.
Ao longo do filme é revelado que, apesar de bem-intencionado, o protagonista Vogel usa de meios oportunistas e manipuladores para pressionar a opinião público em favor de suas suspeitas, vazando evidências para a imprensa e fomentando a construção de um raptador monstruoso e uma vítima santificada para o sensacionalismo inflamado. Seu fracasso passado com o recorrentemente mencionado caso do “mutilador” – em que levou um homem a prisão e julgamento, destruindo efetivamente sua vida, e finalmente vê-lo ser inocentado afinal de contas – demonstra que sua perseverança em métodos não científicos e contra jurídicos já o cegaram uma vez e podem muito bem está-lo cegando novamente. Através de seu método de justiça tão deturpado, o personagem demonstra inerentemente a efetividade social do quarto poder (os veículos midiáticos), na execução de justiça, mesmo no que diz respeito a transgredir as vias da legalidade, visto que a verdade estabelecida pela imprensa determina o que será tido como fato e o que será ficção. Tendo o poder de determinar como fatídica a incriminação de um indivíduo através da mídia, é quase impossível sua contestação.
Ao final da obra surge uma já idosa buff (investigadora amadora) que compilou por anos evidências de uma série de crimes semelhantes ao rapto da jovem Anna Lou, atribuindo-os a um misterioso “homem da névoa”, assim desqualificando o professor Loris como suspeito. Vogel entretanto se convence de que Loris de fato matou Anna Lou e arquitetou essa investigação contra si mesmo para que pudesse ser indenizado em grandíssima quantia em dinheiro como o suspeito do caso do “mutilador”, e então leva a cabo a justiça com as próprias mãos.
*[SPOILER] Vogel confessa ter assassinado Loris a seu psiquiatra, Augusto Flores (Jean Reno), e após ser preso, nos é revelado que Flores de fato era o “homem da névoa”, e que Vogel se deixou, de fato, cegar por sua intuição. O convencimento pelo emocional de que a ciência e a razão pouco importam diante da necessidade de ação imediata é uma falha recorrente, especialmente veiculada à população em diversas manobras midiáticas no jogo político e social, portanto a trajetória do justiceiro irracional Vogel se estabelece como exemplo negativo, cumprindo nada senão desserviço à sociedade que busca ajudar.